O corpo reconhecível

Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura
8 min readSep 21, 2021
Fotografia: Amanda Francelino

I

o critério social da verdade não tem mais valor para o doente; e neste mundo que a ausência do outro privou de solidez objetiva, ele faz penetrar todo um universo de símbolos, de fantasmas, de pavores; este mundo no qual apagou-se o olhar do outro torna-se permeável às alucinações e aos delírios.

Michel Foucalt, 1954

II

Na véspera da intervenção administramos 0,20 centigrs. de Luminal e, na manhã da operação, mais 0,10 centigrs. Nos agitados temos usado Scophedal como anestésico de base, com bons resultados. A cabeça do doente é raspada somente o necessário para garantir a assepsia em torno do ponto da trepanação.

Egas Moniz, 1936

III. Remoção da perna que eu mais amava

O médico foi passando as informações ao mesmo tempo em que escrevia porque os médicos têm esse talento de tarefas múltiplas, divergentes; cada sentido puxando para um lado.

Dizia que seria necessária uma dieta bastante estrita com um jantar leve até às dez da noite e, a partir daí, somente poucos goles de água, talvez café, talvez suco de meio limão, talvez com pouco de açúcar. Na hora que ele falou, meus olhos começaram automaticamente a virar de um lado para o outro numa tentativa tonta de buscar um sentido convergente nas tarefas duplas, porque era necessário ouvir atentamente cada ponto da explicação e era necessário não deixar que o desespero tomasse conta. Tinha que guardar tudo na memória, na memória onde toda minha vida se repete e somente o necessário fica sendo esquecido. O desespero tomava conta, corria como um fogo por cima de tudo, devastava tudo, ficava difícil engolir. A própria saliva — tudo — pra segurar a água que queria, a qualquer custo, verter pra fora do corpo molhando os cílios.

A clínica era muito bonita e bem decorada em tons rosados, mas o ar condicionado era incrivelmente forte a ponto de eu imaginar que estava com febre. Provavelmente estava. A luz entrava tímida, de sol, através das persianas de uma limpeza excelente e dava pra ver os micos brincando nos fios de alta tensão, muito pequenos, uma gracinha, com a neblina passando mais pra longe nos morros verdes da Gávea. Havia música alta mas, de onde eu estava, a música já chegava bastante desgastada, música caribenha. Explicaram que fazia parte da terapia dos jovens pacientes, todos fantasticamente tristes. Mas fixei o olhar nos micos e pensei em sacar o celular, tirar uma foto que serviria bem no Instagram, num story, mas seria estranho fazer isso na frente do médico. Não toquei no celular. Os micos nos fios. Na hora me veio a lembrança do dia em que meu filho nasceu, do almoço olhando o bebê nascido há poucas horas e dormindo muito pacífico num bercinho transparente desses que se usam hoje em dia. O almoço era carne com molho e a felicidade tomava conta do quarto, do bebê dormindo e uma família de macaquinhos também brincava lá fora, se via através da janela mal limpa. Os bichos brincavam sem jamais serem eletrocutados.

- Você garante pra mim que vai seguir tudo exatamente como estamos combinando aqui? Jejum total?

Ele destacou o papel e me entregou com a mão de um rosto competente, bem vestido, confiável. Um caderno com capa de couro repousando em cima da mesa. Tudo com muita firmeza. Era ele quem pessoalmente faria a retirada da perna lesionada, um pouco abaixo da virilha. Tudo com muita sentença. 93

Meus dedos tocaram o que ele tinha escrito e aí depois eu li o que estava escrito. Os olhos balançando de um lado para o outro.

A partir daquele dia, as coisas ocorreram muito rapidamente, mas, claro, essa é uma impressão que tenho hoje. Na hora não, na hora era tudo feito de um fogo correndo lento devastando. Lento. Lento. Com as luzes piscando. E você pede para que aquilo acabe, mas o tempo está ocupado demais torturando cada pedaço de segundos.

Lembro de ter pego o metrô e era daqueles que não tem divisão entre os vagões e eu fiquei na parte de trás encostada na parede da composição e via as pessoas todas sentadas como se elas estivessem assentadas em um túnel que se movimentava em alta velocidade. Algumas estavam de pé e o metrô correndo, subindo, descendo, fazendo curvas como se fosse um artrópode gigantesco. Um túnel que sacudia as pessoas inertes, embalando. E estávamos todos dentro dele. Glória. Catete. Cardeal Arcoverde. Você nunca chega onde você quer quando quer chegar logo, meu filho observou certa vez.

Daí eu pergunto: e se arrancarmos uma perna do artrópode gigantesco, ele vai sentir falta? Ele tem muitas pernas. O problema é a preciosidade dos recursos limitados e eu só tenho duas. Invejei as centopeias, os lagartos e mesmo as detestáveis lacraias. Arranque as pernas dela!! Arranque as delaaa!! Comecei a gritar como no final do 1984 quando o corpo de enfermagem já me segurava para proceder com a anestesia. Disseram que eu estava muito doente e amputar era a única solução plausível. Foi dessa forma, exatamente dessa forma, que me justificaram a extração da orelha esquerda, de ambos os seios, do dedão do pé (também esquerdo), posteriormente do braço direito e, logo em seguida, a remoção de uma pequena parte do córtex pré-frontal. Agora era a vez da mesma perna que já figurava sem o dedão. A doença havia tomado conta de tudo e infelizmente não havia outro modo de salvar. Não havia, e aí caiu uma chuva de sinto muito, de mas pensa bem seu filho precisa de você, de é muito triste isso mas você precisa fazer isso por ele, de mas você ainda é jovem tem tanta coisa para viver, de você é uma guerreira, de Deus não dá a ninguém um fardo que não possa carregar. Dessas diversas coisas que as pessoas dizem. Há sempre alguém dizendo alguma coisa. As pessoas segurando meu corpo, as pessoas sempre estarão dizendo muitas coisas e estarão pressionando a máscara transparente em forma de domo bem na frente do meu rosto meticulosamente maquiado, o cheiro de éter, no corredor, tons de rosa, subindo e descendo pelo subterrâneo do Rio de Janeiro, faz uma curva, Cinelândia, chopp no Amarelinho, contando as ondas no Posto 9 enquanto a bandeira colorida sacode no vento forte. Existiam muitos sorrisos nos meus sonhos, mas eles sempre duraram muito pouco. Os sonhos.

Uma coisa que pensei é que preciso ser mais resiliente. O tempo é capaz de curar tudo e para tudo o que o tempo não resolve, lá estará um bisturi, uma motosserra, um comprimido caro, um fósforo e 4 galões de combustível para dar jeito. Minha grande torcida, no entanto, era para que a anestesia simplesmente me levasse embora de um modo em que eu não pudesse acordar para tomar aquele golpe pugilista do pânico que acontece quando você acorda e descobre que sobreviveu mas, em contrapartida, nunca mais será a pessoa que efetivamente estava viva. Você não poderá caminhar até a padaria ou, como se pode imaginar, pular amarelinha. Tyson em pessoa causando aquele impacto, pressionando o punho no seu estômago enquanto os gritos tentam ganhar vida nos meus pesadelos recorrentes, sem jamais emitir um único som. O corte logo em abaixo da virilha. Pode-se dizer que aquela era minha perna favorita, a perna que mais amei, mas tiveram de retirar para eu não morrer, entende? Foi isso.

Essa justificativa muito inquestionável é, entretanto, um troço difícil de se habituar. Meus olhos mexendo de um lugar para o outro lugar. Os dedos tocaram o papel do médico e sorri dizendo que tomaria religiosamente o suco de meio limão, que adorava limonada. Na hora em que os enfermeiros me seguraram foi impossível conter aquele choro que tinha ficado guardado feito uma carta antiga que a gente precisa libertar da caixa, lá de dentro, a carta escondida como quando — naquela vez — o cara tampou minha boca e começou a surrar meus quadris com os cotovelos enquanto metia.

Chorei, mas muito quieta, sempre, já que não se deve incomodar os outros. Isso é grosseiro. Você tem que se deixar levar quando não há mais o que ser feito e ser resiliente quando não existe mais capacidade física seja para a luta ou seja para a fuga. Entretanto, é sempre esquisito estar diante da destruição inexorável. Vai contra todos os instintos (luta/fuga) e a única saída entre aspas possível está no som do estalo quando a corda quebra junto da testa e o mundo entra em fade out (a mente começa a criar histórias que acontecem em uma parede e você agora já está muito longe, num lugar tão macio, andando pela cidade, você nem se mexe, as coisas parecem um filme, a dor, a violência, a revelação da mentira, a inadequação, o travesseiro na cara é tudo só um filme na parede, a mente começa a criar histórias mais confortáveis onde nada realmente nunca aconteceu. as mãos estão de volta, a perna está de volta e as orelhas. vou fingir que são meu corpo, mas de quem são esses pés? nada nunca aconteceu).

A família de macaquinhos caindo esturricada num choque elétrico inesperado causado por uma falha na manutenção dos cabos de alta tensão da companhia de energia elétrica do Rio de Janeiro, bem no meio da rua. A luz do sol entrando através das árvores, o painel em led informando que ainda faltam muitas estações para chegar, meu filho pedindo mamãe me ajuda enquanto os ossos rádio e ulna estavam partidos e eu o abraçava pedindo pelo amor de Deus deem logo uma droga para minha criança!

Piscando na cama do hospital, olhando para o belíssimo teto turquesa vitoriano do hospital, em detalhes dourados, paralisada da cintura para baixo, pensei que, francamente, eu tinha demorado tanto e cheguei à parte alguma. Eu sempre soube que não haveria eu quando tudo se tornasse uma sucessão de dias correndo por cima de um corpo irreconhecível. Existem os rasgos e as costuras. Existem as lacerações e a caridade daqueles que tentam curar. Existem muitos estupros e existe o tempo. Mas nada, nada pode ser considerado superior ao corpo que antes se jurava inteiro balançando inerte de biquíni no sol forte da piscina. Música caribenha. Olha, essas lembranças é que fodem tudo.

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Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura

Crônicas e historinhas safadas para pessoas que não voltaram pra terapia hoje. Quem sabe amanhã? @prillas