O Futuro Defunto

Ivan Nery Cardoso
Ensaios sobre a loucura
3 min readSep 7, 2020

A verdade é que, para os filhos, ele já estava morto há anos. Com a irreversibilidade do coma, só faltava morrer.

Eles já tinham facilitado o trabalho dos advogados: se encontraram pelas redes sociais e, ao longo de doze encontros mensais, leram-releram o testamento, dividiram os bens, brigaram, deixaram de se falar, fizeram as pazes e chegaram a um acordo acerca do que fazer com a casa que fez parte da infância de todos. Por fim, encontraram o adendo no fundo de uma gaveta:

No eventual caso de me encontrar sobrevivendo por máquinas e não conseguir declarar minha vontade, tenham a cortesia de desligá-las e me deixem ir em paz.

O advogado averiguou a legalidade do documento e emitiu sua chancela. O médico leu e concordou, bastava darem a ordem.

Um a um, os filhos do futuro defunto visitaram-no em seu leito para se despedir.

O mais velho entrou segurando a foto desbotada de uma mulher. Sentou do lado do pai, o xingou de filho da puta sem coração, abriu seu olho direito, cuspiu nele e saiu.

Entrou a mais velha segurando a Polaroid de uma mulher e de um bebê, deu um, dois, três tapas no seu rosto e saiu.

O do meio entrou, sentou-se ao seu lado, tirou uma lista do bolso e leu item por item. Depois tirou a foto de uma mulher mais velha que ele e uma faca do bolso. Fez um corte pequeno e profundo no lado esquerdo do peito do pai e saiu.

Os gêmeos entraram separados. O primeiro levava um quadro emoldurado de uma senhora distinta. Apoiou-o na única cadeira do quarto, subiu em cima da cama, abaixou as calças, defecou no rosto do pai e saiu. O segundo limpou-o com um paninho umedecido, segurou sua mão e chorou por um minuto e quarenta e sete segundos. Saiu levando o quadro.

É hora, disse o mais velho na pequena salinha de espera fora da UTI. Hora de desligar. A mais velha concordou, disse que era mesmo chegada a hora, apesar dos apesares. O do meio balançou a cabeça afirmativamente, e os gêmeos concordaram. Era hora.

Prepararam o champagne e as taças enquanto o médico e as enfermeiras realizavam todos os procedimentos: desentubar, retirar os acessos das veias, desligar os aparelhos, retirá-los da tomada e esperar. Os filhos aguardavam ansiosos a declaração, tentando descobrir qualquer informação no semblante decoroso do médico, que escutava atento aos batimentos cardíacos. As enfermeiras, tensas, encaravam o relógio tapando o nariz.

Veio o espasmo final do corpo, tum.

A champagne estourou e os cinco gritaram em celebração. Brindaram, se abraçaram, o mais velho não aguentou mais e deixou vir as lágrimas de felicidade. A mais velha ria, xingava o filho da puta, filho da puta, filho da puta!

Veio o espasmo final do corpo, tum, tum.

O segundo gêmeo percebeu. Não disse nada. Abraçado ao primeiro gêmeo, encarou o médico, que ainda escutava os batimentos. As enfermeiras seguiam de nariz tapado, olhando para o doutor, para o relógio, para o doutor, para o relógio.

Veio o espasmo final do corpo, tum tum-tum.

O médico pediu ajuda das enfermeiras, gritou, seguraram os braços e pernas do paciente, tum-tum tum-tum. O mais velho e a mais velha não acreditaram que o corpo se mexia, tum-tum tum-tum tum-tum. O primeiro gêmeo desmaiou ao ver o futuro defunto tossir, tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum. O segundo gêmeo caiu de joelhos, soluçando quando o pai abriu os olhos, tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum. O do meio levou a mão ao bolso. Sabia o que fazer.

--

--