O Isqueiro Rosa

Laz Muniz
Ensaios sobre a loucura
5 min readOct 25, 2017
ilustração do autor ©Laz Muniz

Geralmente, quando chove, as pessoas tendem a virar açúcar. Se tem uma coisa que muito me incomoda é o fato de carregar um guarda-chuva. Mas, não, eu não sou de açúcar e dependendo do nível da água me agrada muito a ideia de caminhar para me molhar. Nada que uma cabeça fervilhando ideias constantemente não agrade que uma garoa não possa refrescar ainda mais.

Mas foi ontem à noite, depois de um longo temporal, ainda em meio aquela água fina, que resolvi sair sozinho a caminhar bem lentamente pela cidade, parar em algum lugar tranqüilo, me sentar, pedir uma cerveja e ler um livro.

Carrego dez livros debaixo do braço, mas não carrego o maldito guarda-chuva!

Tranqüilidade é o que não falta, durante estiadas. E você chega ao bar de sua preferência e percebe que é só você e os garçons e aquela péssima música que nunca condiz com o ambiente. Sempre naquele momento em que o proprietário não se encontra. Mas, como cliente único, pede-se para trocar, como num dos itens do menu. E eu sabia que se o bar enchesse a música ruim iria voltar e eu trocaria de bar.

Sentei-me na primeira mesa do deck, na calçada, virado para a rua de frente ao bar, pedi uma cerveja bock, azeitonas, palmitos e queijo, abri o Eles Eram Muitos Cavalos do Luiz Ruffato - já nas últimas páginas - onde havia parado. Comecei a ler antes que a bebida e a porção chegassem à mesa. Por cima dos olhos só via as luzes amarelas embaçadas de alguns postes e de vez em quando alguns carros passavam pelas poças formadas no asfalto sem ao menos pestanejar para levantar toda aquela água para todos os lados, molhando alguns poucos transeuntes. E ali fiquei, concentrado naquelas primeiras linhas do penúltimo capítulo merda, amanhã compromissos, freio do carro, óleo, do you wanna dance?, festinha, maria aparecida albino, loura, cara de sono, sol quente, chácara, monte de areia (…) quando chegou a garçonete, bastante mau humorada, e colocou a porção e a cerveja na mesa sem ao menos me servir o copo ou perguntar se eu queria mais alguma coisa. Mesmo assim agradeci e não obtive resposta, como sempre. Se retirou como quem estava a fim de encerrar a noite e fez de tudo para que eu percebesse. Percebi. Ignorei seu dia ruim e antes que eu me servisse ou voltasse os olhos para a leitura, novamente, ela entrou. Não, não a garçonete…

Ela entrou sozinha, no bar. Passou por mim. Não pude deixar de admirar, por cima do ombro. Era alta, magra, cabelos cacheados, um pouco ruiva, mas percebia-se a tintura. Escuros, talvez, analisando por suas sobrancelhas. De vestido curto azul escuro, uma sandália baixa, um relógio prata, pouca maquiagem, uma pequena bolsa de mão. Descrições que valem à pena quando seus olhos são pura admiração.

Sabia, naquele momento, que eu não conseguiria mais ler com tranqüilidade, não só porque ela se assentou sozinha numa das mesas, mas por saber que para qualquer pessoa que chegasse àquele bar e se sentasse, eu estaria de costas. Então me levantei e fui até o balcão. Pedi, finalmente, que trocassem a música — por favor — pois estava me incomodando aquela batucada ilógica para o momento. Caetano Veloso. Era só um pretexto para retornar à minha mesa e me assentar de costas para a rua, voltado para o bar e para… ela!

Respirei fundo. Ela não perceberia minha troca de cadeiras proposital, pois estava sendo atendida pela mesma garçonete de mau humor. Coloquei o livro bem próximo aos olhos (geralmente leio há uma boa distância da visão) e dei um gole na cerveja. O segundo gole. Ela tirou da bolsa o celular. Imaginei que não mais o largasse e seus dedos não mais parassem de teclar, compulsivamente. Mas o deixou de lado, ao lado das chaves do carro e um maço de Free Light com um isqueiro cor-de-rosa em cima.

Era indiscutivelmente linda. Sozinha, na minha frente… Ou esperando alguém. Estava tensa, olhava constantemente para o celular. Eu não faria nenhuma bobagem, claro. Poderia ir até lá, me apresentar, oferecer mais uma cerveja após aquela, talvez ela me convidasse para se juntar à sua solidão, mas não. Sozinhos, daquela forma, as coisas podiam se confundir e ficar parecendo um assédio. Preferi apenas admirar, discretamente, sem que percebesse. Ficaria só na ilusão. Me concentrar no livro e só sair dali quando percebesse que a noite nada prometeria senão apenas mais uma noite.

Ela tirou um cigarro do maço, pegou o isqueiro rosa para acendê-lo. Falhou quatro vezes. Ela o sacudiu. Funcionou. Ajeitou-se melhor na cadeira, livre e confortavelmente, apoiando o braço com que estava o cigarro na cadeira vazia ao lado. Cruzou as pernas. Deu um gole na cerveja. Olhou para o celular, relaxou. Olhou para mim. Olhei para ela, voltei meu olhar para o livro. Mas percebia que ela ainda estava olhando para mim. Olhei de novo, ela voltou os olhos para o celular. Não queria confundir as coisas e dar margem para achismos. Ela só olhou. Eu só admirava.

Relaxei, me abstraí da situação e consegui acabar de ler o Ruffato, um dos meus cronistas preferidos. Devia ter levado outro livro ou recomeçar aquele mesmo para ter mais o que fazer. Deitei o livro na mesa, bebi, olhei para o tempo lá fora. A chuva havia voltado com mais intensidade. A cerveja dela já estava quase no fim.

Me veio, novamente à cabeça, a ideia de lhe oferecer mais uma bebida em troca de um bom papo sobre o tempo — homens são insistentes e burros, por natureza — , quando aquela moça linda se levantou, juntou suas coisas, foi até o balcão, pagou a conta em dinheiro miúdo. Ao sair, deu uma última olhada diretamente nos meus olhos. Olhei também, sem medo. Pus-me a admirá-la dando as costas e indo embora, já debaixo da chuva. Quando me dei conta, ela havia esquecido o isqueiro rosa em cima da mesa.

Pensei — como todo homem pensaria — que ela havia deixado de propósito. Me levantei rapidamente, peguei o isqueiro, dei alguns passos largos até a moça, que já estava entrando em seu carro e a chamei _moça!. Ela se voltou surpresa com um leve sorriso e uma leve desconfiança e um leve _oi?. _Você esqueceu seu isqueiro, já esticando as mãos para lhe devolver, quando ela me devolveu a resposta _ah, pode deixar! Acabou o gás!

Entrou no carro, arrancou, fiquei ali, com o isqueiro rosa na mão.

A chuva começou a engrossar. Voltei para a mesa. Nada mais para ler. Outra cerveja, um livro terminado e um isqueiro vazio. Apenas mais uma noite.

Acabou o gás!

Laz Muniz

Amante (desastrado) hors concours.

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