O namorado de Lorena

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
4 min readJun 9, 2019
Stooni Martin Steiner

Depois que percebi que havia algo de absurdo no namorado de Lorena, resolvi não expor mais minhas considerações. Estava claro que não teria como evitar problemas caso mantivesse minha conduta de bom falante, interagindo com todos, como era de costume. As coisas agora se apresentavam de maneira desordenada, como se um caos natural de ações e entendimentos se firmasse. O que parecia é que havia uma insanidade pairando, e eu já não sabia mais quem eram as pessoas que me cercavam, seus pensamentos, suas identidades e planos, atividades estas que sempre me foram tão íntimas. A começar por Lorena. Não diria que minha filha mudou quando começou aquele namoro, pois ela se tornou uma pessoa leve, sim, mas ficara muito alheia à realidade.

Não havia como explicar o que estava acontecendo. Certo é que nada era como antes. Até mesmo minha casa se tornou diferente, com aspectos que me faziam acreditar que não era mais o lugar onde eu passava os dias. Cores que eu não percebia, cheiros que oscilavam entre cítrico e doce. Um frio incomum vinha nas noites de primavera que sempre me foram mornas; tardes silentes, quando lembrava nitidamente dos uivos dos ventos pelas frestas. Procurei tratar do assunto com Rosália, minha esposa. Falei da energia que passou a existir, sem saber defini-la se boa ou ruim, mas que me causava uma espécie de ansiedade, como se um contato maior com tudo ao redor estivesse me criando sensações para além de um plano explicável. Temi por me considerar louco, embora fosse essa a tendência diante de um quadro que se agravava.

Minhas outras filhas também pareciam diferentes desde quando Lorena nos apresentou o seu namorado. A naturalidade com que tratavam assuntos críticos passados, como quando Lorena escorregou e por muito pouco não despencou de uma rocha numa cachoeira, ou como se dispunham a conversar sobre temas espirituais que me pareciam muito abrangente para acompanhar, acabava por me colocar num estado de isolamento. Ninguém notou essa situação, o que não era de se surpreender diante do que estava acontecendo naqueles dias. Ficava de certa forma claro que não percebiam porque, de fato, passavam a fazer parte dessa nova atmosfera também. Estavam tomadas por esse ar contemplativo que se espraiou como uma espécie de arte intoxicante, que só se torna perceptível quando acompanhada por explicações lógicas.

Num determinado dia, tentei uma aproximação com Fernanda, minha filha mais nova, a que sempre foi a mais centrada. Nunca tivera namorado e isso poderia fazer com que compactuasse com meu diagnóstico sobre a questão.

— Filha, o que você acha do namorado da Lorena? Não te parece estranho?

— Como assim, pai?

Daí em diante eu não consegui mais explicar a ela o problema, ou o que eu entendia como tal. Olhava-a fixamente como que querendo saber se sua pergunta retrucando a minha já fazia parte do complô silencioso entre todos, uma conspiração para desarticular e anestesiar meus pensamentos ou se ela, realmente, não alcançava o ponto em que eu já estava. Era muito claro para mim que o ambiente naquela casa, para não dizer na vizinhança toda, estava impregnado por um sutil embaraço. Não poderia me atrever a dizer que se tratava de Lorena estar envolvida com alguém de passado criminoso, ou que tal homem se recobrisse de mistério insondável deliberadamente, pois soaria seriamente tolo, quase como se eu afirmasse que se tratava de um psicopata ou, usando de maior desvario, um tipo alienígena disfarçado. Certo era que o namorado de Lorena me desafiava com seu olhar bucólico, por assim dizer perdido, com sua atenção deslocada de um sentido linear e isso lhe furtava as credenciais humanas. Passei a beber mais do que de hábito, ler sobre como certas pessoas influenciam outras, sobre inteligências emocionais e artigos psicanalíticos que me recolocassem a par do que estava ocorrendo. Queria saber que tipo de poder era aquele, que ausência de intenções bem articulada era aquela. Certa vez, quando me encontrei a sós com ele, vi a oportunidade para, então, enfrentá-lo:

— Parece que vai chover mais tarde.

— Parece.

— À noite.

— Talvez antes.

— Você acha? — essa minha pergunta foi crucial.

— Acho.

Fiquei olhando seus movimentos faciais direcionados à janela. Ele achava que poderia chover antes da noite e também foi reticente ao concordar comigo em tons vagos. Embora isso pudesse não dizer nada, as respostas somadas ao modo como ele se expressou confirmaram minhas intuições. Ele respondeu sem desviar os olhos do nada, um nada que bem poderia ser tudo, que ao invés de ser fuga, era o habitat, já que encontrava a vida pelo vidro. Ele tinha certeza de que choveria antes de anoitecer, estava certo disso, mas foi prudente em apenas não se descomprometer com minhas opiniões, pois entendeu que eu já o havia descoberto. Foi nesse momento que vi que ele tinha uma ligação estreita com o tempo, com a natureza, algo que eu não vira em nenhuma outra pessoa. Arrisco a dizer que Lorena namorava uma entidade e que nem ela mesmo percebera isso. Olhei para a janela também.

— Eu sei quem você é — , eu disse.

— E quem eu sou?

Nesse momento, Lorena entrou na sala. Eu estava satisfeito. Não havia mais motivos para seguir me assombrando com seu namorado. Começou a chover.

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