O Pescador

Ivan Nery Cardoso
Ensaios sobre a loucura
2 min readMay 27, 2020

Vindo da imensidão branca e vazia, o pescador abre um buraco quadrado no gelo com uma serra e joga sua linha nas águas que correm na escuridão profunda. Senta-se no banquinho dobrável que trouxe e aguarda.

Não se sabe quanto tempo depois, a linha dá sinais de sucesso, devolvendo vida à estátua congelada do pescador. A batalha é breve em suas mãos calejadas. Do buraco quadrado, iça uma cena de amor. Pequena, sem forças para se debater, mas uma sobrevivente: traz nas barbatanas cicatrizes do ataque de uma criatura maior. Emanando um calor débil, a cena de amor é abatida pelo pescador sem esforço. Uma paulada na cabeça e já está pronta para voltar às águas atravessada por um anzol maior.

O pescador não tem pressa. Sabe quão longo é o dia. Mexe de vez em quando a linha para emular algo vivo. Se quiser pegar um assassinato em sala trancada ou um “eles estavam mortos desde o princípio”, não pode oferecer algo morto. Com sorte, poderá usar o assassinato como isca para pescar uma investigação. E, com a investigação, pegar uma conspiração complexa o suficiente para durar o inverno inteiro. Sim, isso seria bom. Seria muito bom. Muito bom mesmo.

E aguarda, o pescador. Encolhido no seu próprio calor. Mergulhado em fantasias.

Antes que chegue a eternidade, o pescador declara fracasso. A luz está apagando, o frio penetra suas roupas. Não há quem se interesse pela cena de amor. Recolhe a linha, pega o banco, a serra, e retorna por onde veio, levando a cena de amor debaixo do braço. Ela terá que lhe bastar. Passo a passo, o pescador vai desaparecendo na imensidão branca e vazia. É quase um ponto agora, e a cena de amor, mesmo morta, mesmo passando o dia imersa em águas gélidas, aquece o corpo do pescador, bem no ponto em que o toca.

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