O PONTO DE NÃO-RETORNO
Há um ponto que se atinge e do qual não mais se pode retornar ao que era antes, mais ou menos o que Heráclito dizia, lembra? Não tem’portância se não se lembra, é algo como Não se percorre o mesmo rio duas vezes, porque o rio nunca é o mesmo, e nós também, ainda que não sempre, mas vez ou outra atingimos um ponto em que não se retorna ao que era antes, pois não existe mais, opera-se uma irreversibilidade absoluta que moveu tudo de onde estava e onde estava não mais estará, aquela saída se fechou de uma vez por todas, note que não falo da passagem do tempo, isso todo mundo sabe de cor e salteado, que não se volta no tempo, que ao passado pertence só o passado e ainda que se possa olhá-lo por uma fresta, a ele não se faz mais nenhuma visita, é como ir passando por porta depois de porta e elas irem sempre se fechando às suas costas, nesse sentido têm razão que aqueles que dizem que o sentido da vida é, afinal, para frente, se ignorarmos, é claro, que o tempo não opera em sentidos como conhecemos de frente, trás, lado, esquerda, direita. Não é do tempo que falo, é da vida em matéria, tudo que fazemos opera uma alteração nesse mundo em que vivemos, e há um sem-número de possibilidades que formam esse tecido que nos cobre e se confunde por ser, no final das contas, nós mesmos, direita, esquerda, cima, baixo, azul, verde, amarelo, aprender, esquecer, praticar, sofrer, sorrir, gozar, fingir, verbos, substantivos, adjetivos, a infinidade de opções e ações que vão moldando sem parar, segundo após segundo, minuto após minuto, palavra dita, palavra calada, braço erguido, soco dado, o que seja, o completude de nossas existências. Se ouve bem, percebe que o tecido nunca é o mesmo, está sempre com um novo retalho ou um rasgo um uma emenda, por mais mal feita que seja, mas, ainda que assim seja, a nós, humanos, é dado voltar atrás, retornar ao que foi ou ao menos ao simulacro do que foi. Nós somos feitos disso, do poder de escolha, e fazer escolhas é nossa atividade principal desde o dia em que abrimos nossos olhos e choramos pela primeira vez, a escolha do peito, a escolha do passo, a escolha de meter o dedo na tomada, a escolha de correr, a escolha de sair, a escolha de amar, a escolha de descobrir, a escolha de voltar, tudo isso em um fino equilíbrio entre possibilidade e necessidade, que é a faceta que o mundo nos devolve, enquanto o enchemos com nossas opções, ele se mantém firme ao dizer Escolhe, faz suas escolhas, mas saiba que há aqui uma pedra e aqui ela permanecerá, e sua escolha com essa pedra terá que lidar. Pode-se, em um reducionismo que cabe nessa conversa, dizer que é essa a raiz essencial da inatingível liberdade.
Inatingível, por quê? Há tanta gente livre.
Inatingível por definição, creio eu. E aí há o ponto do não-retorno, que é de onde tudo isso começou e para onde vai desembocando, como tudo desemboca onde deve, uma hora ou outra. Estamos acostumados a fazer escolhas, precisamos fazer escolhas, mas chega um momento em que a escolha que tomarmos, o próximo passo, será o passo do não-retorno: não há como andar para trás depois disso. O ponto do não-retorno acontece na escolha que define uma linha divisória muito clara entre antes e depois, e ao antes, assim como o passado do tempo, ficará, invariavelmente, confinado ao que foi e não voltará a ser. O ponto do não-retorno é a outra face da possibilidade. O ponto do não-retorno é o que se torna definitivo.
Me deu arrepios.
A ideia?
Sim, terrível, terrível. É terrível essa definitividade.
É, sem dúvida, assustador, porque nosso traço distintivo é justamente a contínua reinvenção de quem somos.
Como assim?
Olhe o Bóris ali no canto, como ele dorme, você vê?
Sim, parece tranquilo.
E está, eu acho, ainda que eu não possa dizer com certeza o que se passa entre suas duas orelhas, é certo que ele não passa muito tempo do dia refletindo sobre ser um cão e suas ramificações, o Bóris é um cão e apenas isso, suas ações são reflexo de ser um cão e ele não se incomoda com o que poderia ser, pois o que ele é lhe basta, então ele se alimenta, depois caga, depois tenta subir no sofá e vez ou outra consegue, e pede carinho, e lambe meu pé, e pega a coleira na boca para ir passear, e depois descansa assim, deitado e esparramado no piso frio, sem que um segundo da sua existência seja dedicado a pergunta Quem sou eu?, pois ela foi há muito respondida, ou, melhor, nunca foi respondida, pois nunca foi efetivamente perguntada.
Então melhor seria ser um cachorro?
Pensando em um espectro amplo, talvez, há gente que vive em condições muito piores do que o Bóris, mas no somar e subtrair o resultado não me parece tão claro assim.
Um cachorro pode ser muito maltratado, isso seria ruim, mas pode ser igual o Bóris, um rei peludo, o que seria muito bom, viver sem outras preocupações.
Seria?
Não comece a me fazer perguntas, você começou o assunto e quem faz as perguntas aqui sou eu. Mas, não sei, parece que todos nós, gente de carne e osso, parece que vivemos sempre olhando por cima dos ombros, garantindo que a estrada que percorremos ainda está lá, precisamos de um porto seguro, de um lar, de um lugar para voltar, precisamos de uma saída, de uma porta que esteja aberta, olha só, sei que não gosta de juridiquês, mas o exemplo me veio à cabeça, para tudo que se faz na lei há uma saída, para o contrato o distrato, para o casamento o divórcio, ninguém será obrigado a permanecer associado, é um botão do pânico para nossas próprias decisões, e o que você diz é que, em determinado momento, haverá uma situação em que esse botão será suprimido. É isso?
Em outras palavras, sim.
Então como se preparar, digo, como antever esse ponto, como é?, isso, ponto de não-retorno?
Essa é a pegadinha, não há como antever. O ponto de não-retorno só se revela quando atingido e ultrapassado, é preciso que nossa ação opere no mundo e o transforme de tal maneira que o retorno ao ponto imediatamente anterior se torne impossível, e antes que nossa decisão veja florescer suas consequências tudo permanece, é claro, no infinito campo das possibilidades.
Me sinto claustrofóbico, essa ideia me faz pensar nas paredes se fechando contra mim.
Elas não estão todas a todo momento?
Espero que não.
A infinitude de opções é também a inexistência de opções e vamos assim, exercendo nossa singularidade através do que os mais chegados ao texto sagrado chamam de livre-arbítrio, só para, cedo ou tarde, mas inevitavelmente, descobrirmos que estamos todos, afinal, acorrentados às nossas próprias escolhas. Podemos ser tudo, mas, no fim, somos o que somos.