O Pote
O telefone estava chamando e Artur não fazia ideia do que iria dizer para a sogra. Desde a primeira visita ao médico, Ana, sua esposa, havia sido extremamente clara sobre não contar uma palavra sequer para a mãe. Mas agora a situação já estava num nível em que ela não poderia mais ser responsável por essas decisões.
“É maligno,” confirmara o segundo médico ao olhar os exames. “No cérebro e na vesícula biliar.”
Antes que pudesse saber quanto tempo ainda teria de vida; antes mesmo que a primeira lágrima escorresse dos seus olhos; Ana virou para Artur e declarou mais uma vez:
“Nem uma palavra disso para minha mãe.”
“Mas…”
“Nem. Uma.” Virou-se para o médico e perguntou: “Quais os procedimentos?”
Saíram de lá com o pequeno manual de instruções, o potinho de vidro com tampa dourada e um mês pela frente. A partir daquele dia, aonde Ana fosse, Artur não estava longe, o potinho sempre em mãos.
No fim, ela teve apenas duas semanas. Avançou rápido. Mal tiveram tempo de fazer tudo que Ana queria ter feito antes de morrer. Optaram pelas viagens.
Estavam no Caribe, estendidos sob o sol tão branco quanto a areia entre os dedos dos pés, observando o marejar preguiçoso das águas translúcidas, quando ela pegou sua mão com a pouca força que lhe restava e o encarou feito uma cega buscando um som distante.
“Ana?”, ele perguntou, procurando o potinho na mochila, temendo o que ocorria à sua frente.
“Não conta…”
“Ana?!”
Por pouco ele não perdeu o momento. Conseguiu desatarraxar a tampa e capturar suas últimas palavras:
“…pra minha mãe.”
Artur fechou e selou o pote. Só então chorou sobre o corpo inerte e esquálido de sua amada. Sua Ana.
No voo de volta, fazendo o traslado do corpo, as reações começaram a fazer efeito no pote. Pouco a pouco, como uma foto se revelando, ele pôde enxergar o rosto de Ana se materializando, pequenino, translúcido. Artur sorriu e deixou escorrer as lágrimas. Alguns passageiros curiosos observaram a cena. Surgiram então, dentro do vidro, seu cabelo, o braço direito, a cintura, as duas pernas, e só.
A alma de Ana estava incompleta no pote, sem o tronco, o ombro esquerdo e o respectivo braço. Era Ana, mas como se perfurada por um grande rombo. Uma vela rasgada balançando ao vento, repetindo as palavras:
“…pra minha mãe.”
“…pra minha mãe.”
“…pra minha mãe.”
“…pra minha mãe.”
Ele sabia o que vinha antes, a primeira metade dessa frase, a parte de sua alma que agora estava perdida nos céus do Caribe, espalhadas pela brisa suave que soprava no dia anterior. Respeitou o desejo da amada ao longo do voo e da retirada das malas. Mas, ao ver o caixão saindo da aeronave, algo mudou dentro dele. Ana parecia implorar de dentro do pote, engasgando a frase e então repetindo:
“…pra minha mãe.”
“…pra minha mãe.”
Artur observou sua pequena Ana por um tempo que jamais foi medido, como se pedisse perdão. Então pegou o telefone e discou. Não tinha ideia do que iria dizer para a sogra.