O que é para ser

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
5 min readSep 7, 2019

Aquele dia de trabalho fora além de penoso. Mais um, já que Vitor esquecera como se envolver em momentos agradáveis ao lidar com publicidade. Pouco a pouco, ele passava a se sentir inútil com os esquemas persuasivos que criava e, assim, começou a se ver iludindo não apenas os consumidores como ele próprio. Apesar de acharem ótimas as suas peças, de comprarem os produtos que sugeria, isso já não se traduzia em satisfação. Os elogios que vinham deixando de animá-lo fazia tempo, agora praticamente o oprimiam, e energia mesmo ele só encontrava nas xícaras de café e na necessidade de se estar empregado, pois o que importava, em última análise, era ser o que se é: o responsável por gerar recursos para si e pra família, que logo iria aumentar.

E é assim! O sabor vem, vem inteiro, todo pra mim!

E é assim, bolando já sem paixão, represado em preguiça, mas entregando com profissionalismo o que era demandado. Fazer o que se ama se tornava algo relativo, mera paixão tratada com desdém, tal como um adolescente que por ser tão seguro de si, finge entender certos sentimentos universais. Seu ofício estava de tal ordem fora de propósito que mesmo as gostosas risadas das crianças, hipnotizadas, cantarolando à exaustão aquele jingle de biscoitos amanteigados, não mais o comovia. Tudo andava realmente esquisito e até aquilo que genuinamente lhe excitava, a literatura, ele já não alcançava: suas leituras mais recentes não passavam de tutoriais sobre herança genética, e sua última composição longe do expediente, um bilhete explicando clipping.

E é assim! Não adiantava reclamar quando o que lhe aborrecia estava nos trilhos; o melhor era continuar sendo leal à sua maneira prática de conceber as coisas. A esposa grávida precisava de poemas, não de problemas. Questões existenciais a irritariam, mas, poesias, não, estas serviriam para alegrá-la de alguma forma; se bem feitas, propiciariam um fugaz contentamento além daquele que supostamente ela já deveria estar experimentando. Como futuro pai que era, tinha a obrigação de lutar contra essa onda pessimista que o acometia, essa turbulência mental que o arremessava às pedras da insensibilidade novamente, e escrever se mostrava como a única salvação.

Vitor sabia que era uma pessoa que reunia todas as senhas para a felicidade e tinha de saber usar esse trunfo. Dinheiro não o preocupava, bem como a vida social também não. Apesar de ser costumeiramente indiferente aos problemas das pessoas mais próximas, elas estavam ali, compartilhando um ou outro riso, brindando amenidades. Algumas queriam chegar onde ele chegou, mas disso ele agora debochava, cético em relação ao seu próprio sucesso. Bebia com esses amigos e bebia mais ainda quando estava só, para tentar reduzir a distância entre o mundo fictício e o real, que de verossímil tinha pouca coisa.

Estranhamente, passou a se considerar parte de um grupo caricato, e isso se somava à tormenta que lhe perturbava pelas manhãs: estar ciente de que tudo o que o incomodava vinha pelo seu sacrifício. Era paradoxal, mas “é assim”, como afirmava o jingle que criara. Lembrou-se do vendedor que o havia abordado com uma caixa de balas no dia anterior. Vitor propagara aqueles doces, e agora lá estavam eles, sendo vendidos por duas moedas para não deixar faltar comida de verdade na casa de alguém que ele não conhecia e que nem vontade tinha de ter maiores informações a respeito. Bateu apenas a dúvida sobre se seria realmente pior se estivesse no lugar daquele homem.

Para minar o período conturbado, por vezes, arriscava umas rimas vadias nas madrugadas insones, letras vagas que tentavam encobrir o receio usando algum anseio, flagrar uma virtude que não fosse tão rude, ver beleza nascendo na incerteza de considerar grave uma gravidez, algo que o fizesse acreditar que a melhor cesárea fosse a do tipo etérea, longe de qualquer entrave ou lucidez, enlaces fônicos que seriam, por certo, o bálsamo lírico para diluir uma tensão quase insuportável. Contudo, sentia que aquele enfileiramento de palavras chegava como um arranjo demasiadamente mecânico, manchado de vaidade, confirmando que tudo era fruto de esforço e não de uma reação espontânea aos fatos, e assim desistia do mergulho em poemas mais densos, que estivessem realmente conectados com o prazer natural de ser pai.

Pensou sobre isso: seria mesmo um prazer ter um filho? Será que filhos, assim como poesias, não seriam só propagandas enganosas, coisa que ele entendia bem, botes instáveis sobre os quais nos atirávamos para conseguir fôlego na vida? Era tarde para refletir sobre matéria tão complexa. Essa sombra de um escritor frustrado que se tornara um marqueteiro de sucesso, ruminando dores de um parto que ainda não acontecera, parecia viver para curtir flagelos inventados, paranoias oriundas de uma incapacidade de versar sem incutir elementos mercantis. Vitor precisava claramente de uma sutura poética para conter essa mediocridade infecciosa, e valeria-se para isso até do amor de quem ainda estava curtindo o recanto escuro e aconchegante de um útero.

O que antes era um publicitário feroz e perspicaz, agora se via resumido a um homem que lutava contra estes pensamentos obscuros, que afunilava responsabilidades, misturando-as a lacunas emocionais profundas. Alguém que deveria escapulir do é assim para se refugiar num quem sabe, sair das certezas, abrir opções. Uma narrativa sem o estilo que o consagrara neutralizaria sua vertiginosa queda psíquica e ampliaria perspectivas, iluminando caminhos a razões que de fato importavam. Só assim conheceria o cotidiano sem os truques que usava para declamar estratégias, passando, então, ao doce estágio de uma vida menos destituída de sentido.

Eram todas aquelas elucubrações adequadas? Aflições sem encaixes que pareciam insolúveis para um homem maduro, senhor de si, considerado vitorioso, que já não pensava em suicídio fazia nove meses. Com ilusões ou não, Vitor pavimentara a estrada para o triunfo e agora bastava encarar com o máximo afeto quem viesse com a notícia derradeira, a de que o que era medo o era sem qualquer motivo. Afinal, o parto fora, sim, exitoso e o nascimento ocorrera como ele imaginara: em lindas estrofes, em versos muito bem elaborados, cheios de sentimentos e isentos de clichês metalinguísticos.

— Nasceu, Sr. Vitor! Assimétrico, um tanto incompreensível, mas tão bonito…

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