O Sexo dos Anjos

Ivan Nery Cardoso
Ensaios sobre a loucura
4 min readJun 1, 2020

Eu ainda podia aproveitar as luzes bruxuleantes e o efeito das maçãs douradas para me esconder pelos cantos do palácio e tentar achar a saída, mas se não me apressasse aquilo custaria caro. Entrar tinha sido fácil, roubar algumas maçãs douradas da cozinha também. Mas sair, que caralho! Aquele lugar era um labirinto de corredores, quartos, banheiros, cozinhas, mais corredores, mais quartos, mais banheiros, e todos eles cheios de anjos fodendo ou se revezando para dar uma mordida numa maçã antes de começarem a tirar as roupas e foder. Por enquanto eles estavam distraídos e pacíficos, mas uma hora a orgia ia acabar e eu seria descoberto ali. Precisava me apressar.

Digo me apressar invocando a linearidade do tempo, a nossa (a minha, a dela) única forma de perceber o tempo. Da mesma forma que só enxergamos através da luz, dos ínfimos comprimentos de onda do espectro eletromagnético que nossos olhos captam: as cores, do vermelho ao violeta. Nada acima, nada abaixo. Escuridão. Para os anjos, claro, o tempo é uma coisa completamente diferente. Como se enxergassem raios-x e ondas de rádio. Para eles o tempo é Cronos, uma pessoa, um ser, um anjo como eles, e que também estava no meio da orgia. Pode acreditar, vi com meus próprios olhos Cronos gritando ao atingir mais um orgasmo na boca de Gaia enquanto Gabriel e Lúcifer em pessoa faziam coisas inimagináveis com seus mamilos. Anael parecia estar se divertindo no canto com o arcanjo Miguel, mas não tive certeza, pois no mesmo instante Azaziel passou cambaleando do meu lado e quase fui descoberto. Minha sorte era que estavam todos distraídos demais com a fodelança paradisíaca e os efeitos das maçãs douradas para pensar no antes, no depois, no entrelaçamento quântico e no humaninho se esgueirando pelos corredores com uma sacola cheia de maçãs roubadas, vestindo uma fantasia de anjo sem auréola. Erro de principiante, eu sei. E por isso eu precisava me apressar.

Corri, virei esquinas, abri portas, subi escadas, desci escadas e nada de encontrar uma saída. Sempre havia mais um corredor, mais uma porta, mais um quarto, mais uma cozinha, mais uma cama, mais um banheiro, mais um emaranhado de peles, penas, garras, genitais e cuspe. Tinha muito cuspe rolando, mais do que eu esperava ou até gostaria de ver. Um entra-e-sai, uma esfregação, lambida para cá, lambida para lá, mão para tudo que é lado, corpo, pele, aura, testículo e cu. Eu mesmo, em certo momento, me senti tentado a tirar uma casquinha. Foi na hora em que Hadriel levantou a cabeça da furdunça em que estava metida e me viu parado na porta de um quarto. Não reparou ou não quis reparar na minha ausência de auréola. Apenas me chamou com um dedo lambuzado: vem, vem.

E eu fui, temendo que meu disfarce fosse comprometido se eu dissesse não, se virasse as costas. Tive de esconder a sacola de maçãs roubadas atrás do corpo e entrar no quarto passo a passo, tentando chamar o mínimo de atenção possível. Antes que eu chegasse perto demais daquele micro bacanal, fui puxado violentamente para trás, para fora do quarto, pelo corredor e para dentro de um banheiro surpreendentemente vazio. Olhei para meu salvador e vi Eva, vestindo roupas normais de folhas e a auréola que eu tinha esquecido de vestir. Ela estava abrindo a janela e me mandando pular. Olhei para fora e vi que estávamos no térreo. Amarrei bem a sacola de maçãs, passei a alça pelo ombro e pulei. Em menos de um segundo já estávamos correndo pelas florestas daquele jardim proibido. A memória ainda parecia fresca, apesar de opaca. Lembrávamos de todos os atalhos, dos buracos no chão e da força necessária para escalar as vinhas coladas no muro e saltar fora do Éden.

Chegamos no acampamento com o amanhecer, sinal de que a orgia tinha acabado. Ou pelo menos Cronos já não estava mais no meio dela. Se não fosse por Eva, eu ainda estaria preso no palácio e o plano todo teria ido por água abaixo. Ela pegou a sacola da minha mão e contou as maçãs douradas. Peguei duas: uma para mim, outra para ela. Com a primeira mordida, nossas mãos finalmente pararam de tremer, e uma rajada de prazer desceu, elétrica, por toda a coluna. Com a segunda mordida, começamos a nos despir e nos tocar. Deus nos via por entre as nuvens, a ira divina queimando nos seus olhos, mas rimos dela, sabíamos que era incapaz de nos atingir do lado de cá do muro.

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