O sonho de sangue

Luan Carvalho
Ensaios sobre a loucura
3 min readMay 27, 2019

Tendo dito isso, foi elevado às alturas enquanto eles olhavam, e uma nuvem o encobriu da vista deles. E eles ficaram com os olhos fixos no céu enquanto ele subia. De repente surgiram diante deles dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Galileus, por que vocês estão olhando para o céu? Este mesmo Jesus, que dentre vocês foi elevado aos céus, voltará da mesma forma como o viram subir”.

Ato dos Apóstolos 1:9–11

Monastério de Santo Apolônio, 27 de maio de 2307

— Orei por uma noite sem sonhos, mas foi em vão, Vossa Paternidade. Não sei mais o que faço. Não lembro a última noite de sono tranquilo que tive, sem temores e pesadelos.

— São tempos sombrios, filho. Todos temos nossas inquietações, o importante é manter a fé e seguir firme com o seu dever sagrado.

— Dessa vez sonhei com a segunda vinda do Nosso Senhor, mas era eu em seu lugar. Sentia que era eu. Eu descia em nosso pátio como um feixe de luz e, no lugar de adoração, os olhos de todos só transpareciam pavor e no fim tudo era sangue e gritos.

— Filho, uma vida de privações pode despertar nos homens dos mais iluminados pensamentos até as mais atrozes perturbações. Decerto, todos nesse lugar já cogitaram a possibilidade de serem eles próprios Jesus regressado, nem mesmo eu posso negar tal soberba. Todos somos pecadores e quando, enfim, Nosso Senhor retornar, nós nos dobraremos diante dele suplicando seu perdão e ele irá nos perdoar e nos erguerá para que possamos caminhar ao seu lado em direção à sua morada. “Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.”

O monge conhecia os versículos, mas nada nas palavras do Abade fazia-o aquietar-se. Não era a primeira vez que sonhava o sonho de sangue. Tratava-o como um pesadelo agourento, mas o que sentia ao habitar Cristo e alimentar-se do corpo e sangue dos seus companheiros de monastério era jubilo e satisfação. Não tinha vontade de acordar, contudo, quando despertava e recordava de tudo, sentia um enorme arrependimento e às vezes punia-se.

Ainda não tivera coragem de confessar, porém começava a pensar que, para livrar-se daquilo, teria de fazê-lo o mais breve possível.

Naquela noite os monges iriam reunir-se na sala do capítulo para tratar dos eventos do mês que estava por vir. Esta seria a oportunidade de confessar-se ao abade. Não suportaria mais uma noite daquele pecado monstruoso.

O dia passou lento e cruciante. O monge mal conseguia concentrar-se em seus afazeres diários. Às vezes acreditava sentir o cheiro de sangue ou gosto de ferro na boca e desejava a morte. Esbofeteava o próprio rosto para livrar-se dos pensamentos malditos, praguejava a si mesmo e, por fim, rezava suplicando o perdão divino. Estaria perdendo a sanidade?

Caminhava às pressas pelo claustro em direção à sala do capítulo quando avistou o abade do outro lado do corredor. Decidiu que iria confessar-lhe naquele momento. Não aguentaria esperar até o fim da reunião, não suportaria mais um minuto daquela tortura. O nervosismo fazia seu corpo inteiro tremer, mas não conseguia discernir se era medo, ansiedade ou fraqueza. Afinal, desistira de comer havia alguns dias, pois tudo o fazia lembrar-se de sangue e morte.

Quando estava a poucos passos do abade, uma forte luz vinda dos céus clareou todo o pátio transformando noite em dia em fração de segundos. Queixou-se de dor com as mãos cobrindo os olhos. Foi aos poucos conseguindo recobrar a visão e ergueu a cabeça em direção à luz. Reconheceu as duas figuras que erguiam-se no pátio fitando-o e, então, soube imediatamente.

Voltou-se para abade que estava de joelhos e apavorado. Pôs as mãos em volta de sua cabeça e com uma mordida arrancou um pedaço do pescoço fazendo o abade guinchar de dor. O sangue jorrou banhando a sua face e tingindo suas vestes. Respirou fundo e abocanhou mais uma vez o abade, dessa vez no rosto. Ao soltar a cabeça, o abade foi ao chão em espasmos e engasgando-se com o próprio sangue, enquanto o monge caminhava em direção à sala do capítulo esboçando um sorriso vermelho.

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