O sonho místico do mendigo

Farlley Derze
Ensaios sobre a loucura
6 min readJun 11, 2021
Marek Piwnicki from unsplash

O mendigo sabia que fazia parte das ruínas humanas. Não por causa do seu corpo e mente, mas de seu destino. Se quando nasceu Deus o escolheu para vagar nas ruas, nem ter onde dormir, sofrer com dor de dente, cabelos com caspa, pele com feridas, unhas grandes e sujas, o que podia fazer? Não seria isso que o faria jogar fora o crucifixo que um dia achou no chão. Se o mundo divino quis dar à sua vida uma rima para a desgraça, não lhe caberia julgar. Ao contrário, no chafariz da praça lavava o crucifixo e o deixava secar ao sol. Não secava com o tecido rasgado de sua roupa fedida. Deus não merecia isso.

Certa manhã, uma viatura policial parou rente ao meio-fio da praça. O mendigo dormia no banco. O sol ainda estava frio. Um dos policiais desceu da viatura, caminhou até o banco e o cutucou com o cassetete. O mendigo sempre teve o sono leve e abriu os olhos. Sem dizer nada, levantou-se e se afastou sem olhar para trás. Antigamente outro policial o acordava com um copo descartável, café da padaria e pão. Se dormisse noutro lugar, ficaria longe da padaria e do chafariz.

Conhecia um viaduto que ficava no final da rua. Poderia dormir ali, de vez em quando, encostado numa pilastra que o protegia do vento na parte de baixo. Mas a praça era o seu lugar.

Certa noite, quando a cidade dormia debaixo da madrugada, o mendigo foi tomado por um arrebatamento. No momento em que se inclinou para se deitar no banco, o crucifixo caiu do bolso de sua calça.

No chão, o objeto brilhava com o reflexo da lua.

O mendigo sentou-se e esticou o braço para pegá-lo. Foi então que o Ser Divino desgrudou-se da cruz, ergueu-se no ar e flutuou até a altura dos olhos daquele homem. O mendigo prendeu a respiração, olhos arregalados, boca apertada, uma brisa fria ao redor.

A Divindade flutuava com os braços abertos que, de repente, moveram-se e apontaram para o alto. O mendigo seguiu com os olhos a direção dos braços erguidos daquele Ser de Luz que tinha as mãos espalmadas para o céu estrelado.

Em silêncio, o Ser de Luz subiu, subiu, subiu até se tornar um ponto brilhante que se misturou ao clarão da lua e desapareceu.

O mendigo se levantou com os olhos grudados no céu, na lua, procurava aquela Luz. Pensativo, lembrou-se do crucifixo no chão e se abaixou para pegá-lo. A Divindade continuava pregada. Ele franziu a testa abrindo a boca e achou melhor fazer uma prece. Talvez devesse pedir perdão. Ajoelhou-se e apoiou os cotovelos no banco da praça com o crucifixo dentro das mãos unidas. Pediu perdão. Não falava, apenas meditava. Sabia que Deus ouvia seus pensamentos. Em seu silêncio, pediu desculpa por ter deixado o crucifixo cair. Se Deus quisesse, ele passaria o próximo dia sem comer, sem beber água, sem ficar na sombra da amendoeira, sem invejar o mendigo da outra praça que tem uma mulher. Ergueu-se, pôs o crucifixo no outro bolso da calça, deitou-se aliviado e prometeu não gastar nenhum centavo de esmolas com cachaça. Puxou seu velho travesseiro feito de estopa e seu cobertor feito com sacos de lixos amarrados com linhas de pipa.

Mal adormeceu, sentiu alguém sentado aos seus pés na outra extremidade do banco. Encolheu os joelhos e olhou pelo canto dos olhos. A pessoa colocou as duas mãos nas pernas dele e sorriu mostrando os dentes da cor da lua.

O mendigo se mexeu para colocar as duas pernas no chão e o chão não estava ali. Quis apoiar os braços no banco da praça e então percebeu que seu corpo flutuava no ar gelado da noite. A outra pessoa também flutuava como se estivesse sentada. O mendigo se endireitou e, desajeitado, sentou-se no ar como aquela pessoa.

— Você sabe quem eu sou?

O mendigo, sem responder, tinha um olhar de vidro, sólido e silencioso.

— Sou uma de suas almas. Você sabia que tem duas almas?

O mendigo ignorou a pergunta. Apalpou o bolso para conferir se o crucifixo não tinha caído outra vez. Uma outra voz surgiu do outro lado.

— Eu sou sua outra alma.

O mendigo girou a cabeça e dessa vez se assustou. Levantou-se de sua pose flutuante e seus pés balançaram no ar em busca do chão. As duas almas deram uma gargalhada que não tinha som. O mendigo olhou para a esquerda, depois para a direita e viu aqueles seres em forma de vapor leitoso ao seu lado.

— Você gosta de ter duas almas? — perguntou a alma do lado direito.

O mendigo sabia que as almas escutam pensamento. Então fez força para não pensar em nada, não responder nada nem em pensamento, nem com o olhar. Preferiu fechar os olhos. As duas almas, então, começaram a cantar num idioma estranho. Como se estivesse dormindo, apalpou outra vez o bolso da calça. De repente, as almas pararam de cantar. Começou uma discussão.

— Ele é meu.
— Não é.
— É sim.
— Nunca será.

Então ele abriu os olhos e viu as duas almas uma com a mão no pescoço da outra. Era uma briga descontrolada. E aqueles seres de vapor haviam trocado de cor. Agora eram fumaças negras com olhos cor de ametista.

— É meu.
— Não é.
— É sim.
— Jamais.

O mendigo compreendeu sua condição. As pessoas normais têm salário, família, amigos, televisão, garrafa térmica e cama. Vivem penteadas e sem dor de dente. Eram pessoas que tinham uma alma. Não havia disputa pelo destino delas. Se alguém tem duas almas, não tem casa, vive sem família, sem o dente da frente, sem chinelo nem desodorante. Tinha um destino aleatório enquanto as duas almas não se resolvessem. Ele quis perguntar desde quando as duas criaturas lutavam pelo seu futuro, ou pelo seu passado, tanto faz. Mas não perguntou. As criaturas roncavam palavras desconhecidas.

O mendigo flutuava no vazio da escuridão, no colo da madrugada. Desengonçado no ar e sacudindo a cintura, conseguiu dar as costas às duas criaturas. Olhou o céu estrelado e a lua. Olhou a cidade lá embaixo, os postes pareciam velas esquecidas.

Perguntou em pensamento por que o luar ajudava os poetas, por que ele nunca podia comer uma macarronada quentinha, por que alguém, aos olhos de Deus, era mendigo?

Absorto, não percebeu o desaparecimento das duas almas. Girou o corpo no ar e se viu só. Um som de motor entrou nos seus ouvidos. Viu lá de cima o caminhão de lixo parando a cada dez metros. Estava com fome. Esticou o corpo e com um instinto novo se deslocou voando com gestos descoordenados. À certa altura, sentiu o odor das lixeiras e certamente teria o seu jantar. Fez seu pouso entre as folhagens da amendoeira. Escamoteou-se por detrás do tronco e pôs seus pés descalços no chão da praça. Apalpou sua calça e certificou-se do crucifixo no bolso. Caminhou até as lixeiras mais à frente antes do caminhão as retirar. Ratos e baratas não eram problema. Eram seres de Deus também.

Achou um hambúrguer quase inteiro e o levou para comer no banco. Estava numa noite de sorte. Mastigava-o feliz.

Quando limpava a barba com as costas da mão, ouviu a sirene de uma ambulância. O caminhão de lixo já ia longe na avenida. A ambulância parou rente ao meio-fio da praça. A luz vermelha cintilava no teto enquanto dois enfermeiros traziam uma maca em sua direção. O mendigo se levantou num relance e o crucifixo caiu outra vez do seu bolso. Mas não dava tempo de apanhar. Foi para trás da amendoeira. Arrotou, mas os enfermeiros não escutaram. Pegaram alguém no banco onde ele dormia. Puseram-no na maca de rodinhas e, quando regressavam para a ambulância, pararam subitamente no meio do caminho. Um dos enfermeiros voltou até o banco. Abaixou-se, pegou o crucifixo e seguiu até a maca. Colocaram-na na ambulância e foram embora.

O mendigo saiu de trás da amendoeira. Ao retornar ao seu banco, viu aquelas duas almas sentadas. Antes de mais nada, olhou para o chão e conferiu que realmente tinham levado o seu crucifixo. Uma das duas almas lhe disse: “Deixa pra lá”. A outra concordou: “Isso mesmo, esqueça, agora somos três”.

O mendigo olhou suas mãos feitas de fumaça. Era uma fumaça branca. Só não sabia até quando.

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Farlley Derze
Ensaios sobre a loucura

Farlley Derze (Acre, 1963) is the Brazilian author of the book “Caligrafias de afetos” and “Plágios do vazio” published by Microeditora Press.