PANDEMIC SALES TIME

Alex Zani
Ensaios sobre a loucura
3 min readJun 9, 2021

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É quase fim de expediente, algo ali, entre a golden hour e o pousar dos pássaros nas árvores. O cachorro late e, recluso pelos últimos 15 meses, é assim que eu sei quando alguém chegou aqui. Pelo som do escapamento não há de ser de um carro comum e pelo fato de não estar esperando ninguém, nem o maldito carteiro ladrão de livros, atento-me. Abro a porta entre latidos:

— Ôôu. Shhhh! Fica quieto… Opa! Tarde!

A lataria manchada revela uma caminhonete dessas antigas picapes da Chevrolet, de fazendeiros que andam de calça jeans azul claro e botina; e é assim que o motorista se veste. Usa uma máscara cirúrgica azul e desce. É um jovem.

— Opa! O cachorro morde?
— Morde nada. Só late. Depende. Shhhhh! Vai pra lá.

A carroceria é coberta por uma lona laranja.

— Você é o morador daqui?
— Sim, sou sim.
— Certamente, senhor, sou vendedor da cidade vizinha, permita-me apresentar nosso produto? — questiona o rapaz abrindo a lona da carroceria.
— Sim, é clar|

Um súbito pico de adrenalina me toma; suo frio. Um susto de ansiedade. Empilhados, volto os olhos para o comerciante.

— Senhor Edson, veja: esta é a mais nova linha de ataúdes da BedWoody. O senhor possui filhos?
— Não, não… Não possuo.
— Certamente, senhor Edson, então veja nossa linha para os adultos. Esses três debaixo, como pode ver, pertencem à linha Premium Mogno, são altamente resistentes aos mais variáveis espécimes de cupins, devido ao tratamento natural com polimento de cera andina e a nano-película de polietileno expandido. Este modelo ainda é contemplado pelas travas e parafusos em aço inox, permitind|
— Sim, olha, com licença. Vocês estão vendendo caixão assim, batendo de porta em porta, de casa em casa?
— Certamente, senhor.
— Tá, e desde quando estão fazendo isso? Digo, é 2021, tem uma pandemia acontecendo, entendo, muitas pessoas morrendo mas eu nunca tinha visto isso.
— Certamente nunca viu pois não era permitido, senhor Edson. Saiu hoje uma portaria que permite esse tipo de venda mais ativa.
— Certo, entendi. Mas olha, eu não tenho interesse não, viu? Sabe, estamos seguros aqui e sem pretensão de comprar um caixão. Na verdade, acho que ninguém tem pretensão, né, em comprar caixão.
— Certamente, senhor, é por isso que agora passamos a oferecer de casa em casa. Veja: você sabe quando vai morrer?
— Não, não sei — esboço um breve sorriso daqueles que saem como um pé na bunda.
— Pois bem, então concorda comigo que pra quem não sabe quando vai morrer, qualquer momento serve?
— …essa frase não é assim e|
— Então, o melhor para você, neste momento, é comprar o seu caixão, e garantir a sua vaga, dessa maneir|
— Certo, olha, por favor, não vou querer mesmo, beleza? Então um obrigado e tenha boas vendas por aí.
— Tudo bem, senhor Edson, vou te deixar um cartão meu então, aqui tem o meu número e o nosso Instagram, caso queira acompanhar as promoções.
—Não precisa não, eu já tenho aqui um plano funerário e, bom, o dia que eu precisar de um caixão, eu vou saber onde encontrar um.
— Certamente, senhor, tenha uma boa noite.
— Boa, até mais!

O rapaz estica o braço e despeço-me com um soco de mão. Antes de ligar o motor da picape, solta um espirro, ainda dentro da máscara.

— Qualquer coisa me ligue, Edson!

Frente a cena, outro pico de ansiedade me toma. Dou-me conta que em nenhum momento havia dito o meu nome ao maldito vendedor.

Entro em casa, me besunto de álcool em gel e tomo um copo d’água. Sento-me no sofá, puxo o celular e abro o Instagram. Uma propaganda aparece.

Arrasto pra cima e compro um caixão de Mogno.

Nunca se sabe.

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Alex Zani
Ensaios sobre a loucura

Editor-chefe da Fazia Poesia • poeta das 19h às 6h • cautela! • faziapoesia.com.br