pombo na sacada

M.
Ensaios sobre a loucura
4 min readAug 27, 2021
From Tumblr: Photography by Peter Solarz — 'after dinner mint'

Quando a vida muito pesa a vontade que dá é sonhar em outras vidas as quais poderiam ser vividas. É um mecanismo de defesa muito conhecido, e no qual eu sou expert. Todos os 'e se' possíveis já passaram pela minha mente, e oportunidades perdidas e reviravoltas dessa força maluca que chamamos de destino são o que mais alimentam essa imaginação fértil de um coração que está a sofrer. Contudo, ás vezes, em momentos de calma, plenitude, minha mente viaja para outro tipo de questionamento. Foi assim, que nas férias, enquanto estava no salão de beleza, olhei pela janela e pensei "Como seria ser um pombo de sacada?"

Ao olhar para a praça, que começa se encher de gente e comércio como se tivéssemos retornado para a normalidade — se ela for possível, já que quando se vive a história, nada pode ser como antes, independente do que a tendência cíclica do ser humano possa indicar—, uma dessas aves, normalmente sujas e machucadas, parou na sacada do prédio, justamente em frente a janela pela qual eu observava a vida passar lá embaixo. Naquele momento percebi algo muito curioso: eu e aquele pombo fazíamos a mesma coisa, a contemplação. Seja lá qual fosse o motivo do pombo estar ali, quieto, olhando para baixo, para o lado, parado ou se bicando, por alguns minutos eu, cuja razão de estar era uma unha encravada, lá fazia a mesma coisa que ele. E foi depois dessa breve epifania que eu me perguntei: como seria ser tão pequeno assim e fazer a mesma coisa que estou fazendo? Será que sentiria a mesma curiosidade que sinto? Será que se neste exato momento eu trocasse de mente com o pombo, eu sentiria algo diferente? "Liberdade, quem sabe", respondi a mim mesma.

Apesar de estar fazendo o mesmo que o pombo, naquele momento ele tinha muito mais liberdade do que eu. Ao contrário de uma mulher adulta, o pombo pode ficar muito bem na sacada suja de um prédio comercial, cheia de refrigeradores, sem os pedestres pedirem socorro achando que ele está louco ou que algo pior está por vir. Outra coisa que contribui para o argumento é que ele possuía uma visão muito mais ampla do que acontecia naquela praça do que a minha, limitada pela janela. Mas, talvez, a mais importante de todas seja o motivo pelo qual desde os tempos antigos, desde Ícaro, nós invejamos os pássaros: sua capacidade de voar o permitia contemplar de outros pontos de vista, e contemplar outros lugares, quando bem entendesse. Eu nunca teria essa facilidade. Não importa o quão eficiente se torne a locomoção humana, ser um pombo de sacada sempre irá superar isso.

O pombo, assim como eu, é miúdo nessa cidade grande e, muitas vezes, de saúde debilitada por causa dela — assim como eu, no longo prazo, acredito. Então, por que não nasci um pombo de sacada? Parece ser muito mais agradável contemplar o mundo de qualquer sacada do que precisar subir escadas ou entrar em elevadores claustrofóbicos com estranhos. Mas um pombo eu não nasci, infelizmente. Nasci com minhas limitações, e a frustração de ser pessoa. Sempre me frustro ao lembrar-me disso: sou humana, e por assim ser, parte minha pensa ser distinta da natureza, por poder mudá-la ao meu bel-prazer. Por esse motivo, me conectar com o que vai além do concreto é muito mais difícil do que para um pombo de sacada, ou qualquer outro animal que — até onde sei — não pode ser domesticado. Acredito que nós pessoas somos frustrados por isso, é uma espécie de recalque contra a natureza, por não podermos ser tão livres como ela — que não se curva a nós. É muito difícil para nós simplesmente fazer o que eu e o pombo estávamos fazendo juntos: calar a boca e contemplar o mundo. Às vezes lembro que sou animal, e só uma parte desse planeta, mas outras me prendo a minha infeliz condição de homo sapiens, que não voa e que é escravizado pela abstração de uma pequena parte do seu corpo (o cérebro). Talvez aquele pombo não estivesse olhando para a praça porque percebeu que ela estava começando a encher, talvez a contemplação tenha sido muito mais natural do que a minha. Ele não pensou em nada antes de olhar em silêncio completo para as coisas passando, ele só o fez porque é o que está acostumado a fazer. Ele não racionaliza isso, já eu estou racionalizando todo aquele momento com um texto reflexivo semanas depois. Quem sabe ser um pombo realmente seja a minha melhor opção…

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