Preces
Por mais contraditório que possa parecer dizer isso, levando em consideração que ainda permaneço ateu, naquele dezembro, além de muitas outras coisas, eu estava em uma jornada para encontrar minha própria fé.
É quase como se eu estivesse andando pelas prateleiras da existência, tentando encontrar algum produto que achasse mais apropriado para levar. Seria meu deus o Deus cristão? Seria aquela que antes eu cultuava, “Inquietude”? Poderia viver pelo deus “Amor”, talvez…. Poderia até mesmo me dizer deus, criar o deus “Rodrigo” e viver por ele!
Mas nada disso; acredito que minha verdade principal, a divindade que cultue atualmente, seja a Incerteza. Assim escrita, com maiúsculo.
Nesse mês de janeiro eu estava lendo um livro que ganhara de presente chamado Pecar e Perdoar, de Leandro Karnal. Durante a leitura, me assustava ao perceber o quanto poderia aplicar daquilo que lia às conclusões e processos pelos quais eu mesmo passara logo antes, no mês anterior. Gostaria de então citar um trecho que ligeiramente adaptei para mim.
No original, era a palavra “Deus” nos lugares onde, aqui, coloquei “Incerteza”. No final as duas palavras aqui significam quase a mesma coisa, praticamente;
“Toda paixão ou submissão é escravidão. Submeter-me cegamente a um Estado, um partido, a bens materiais, a paixões físicas, a vícios: tudo isso diminui minha liberdade. Essas entregas me reduzem a relações horizontais, entre criatura e criatura. Quando me entrego a algo assim, deixo de ser livre, encolho moralmente, pioro pessoalmente e me afasto da sabedoria. Tudo no mundo escraviza.
A única coisa que liberta é a submissão a Incerteza. Por quê? Porque Incerteza me fez. Sou da mesma substância de Incerteza. Entregar-me para Ela não é negar minha liberdade, mas encontrá-la de verdade e para sempre. A entrega à Incerteza liberta. A submissão à Incerteza traz mais liberdade. Assim, o pedido de perdão, em vez de humilhar, de fato, me conduz de volta ao caminho correto e natural. Somente sou de fato livre e digno quando aceito a total e absoluta transcendência da Incerteza sobre meu mundo. Diluir-me na imensidão da Incerteza é, enfim, encontrar-me.”
Eis meu conceito divino particular. Se Deus é incompreensível aos homens, logo é incerto, é impossível de assimilar ou garantir: a fé, ou o dogma, seriam convicções pautadas, concretas e tangíveis. E é egocêntrico demais da experiência humana esperar qualquer coisa como isso.
Todos os deuses são personalizações da incerteza humana encarnada em humilde desconhecer, são a percepção da diminuta habilidade de compreensão que possuímos perante a realidade e aquilo sobre ela que não somos capazes de assimilar, compreender, plenamente conhecer ou simplesmente comprovar.
A percepção de Incerteza é impotência. Deus, no meu caso, como o ateu que sou, é a incerteza primordial, universal, a impotência de discernir entre aquilo real e aquilo intangível.
Eis a fé dos meus novos tempos, aquela que acreditei ser para mim apropriada. Sou talvez o ateu menos ateu do mundo. Não sou cientificista, nem lógico, muito menos racional. Sou afundado em abstrações e humanidades, em humanismos; minha capacidade com números é desgraçadamente medíocre, minha habilidade pragmática é horrorosamente baixa. Outras pessoas usam de deuses mais conhecidos, com uma mitologia mais definida, para assessorarem suas vidas. Tiram seus usos práticos de sua fé em entidades já estabelecidas. Todos temos fé, afinal, seja naquilo que for. Somos todos humanos. Em alguma certeza que não pode ser plenamente provada todos nós nos apoiamos. Isso porque, no final das contas, a própria existência é uma certeza que não pode ser plenamente provada.
“Existir” é só outro nome, outro conceito que algum símio criou em algum momento para fingir que entendia alguma coisa.
Usamos da nossa fé para preenchermos as lacunas e os pontos vazios da ausência de absolutismo daquilo que entendemos. Absolutamente nada é absoluto (e é este o grande paradoxo).
Eis que então apresentei minha entidade particular. Leitor, Incerteza. Incerteza, leitor. Espero que vocês se deem bem.
Agora seria interessante explicar ligeiramente como cultuo esta minha bonita moça, minha amiga imaginária, a encarnação de minha fé. Eu também rezo, sabiam? Eu tenho minha particular forma de orar para a Incerteza.
Muito bem. Gostaria de citar outro texto do mesmo livro de antes, novamente ligeiramente adaptado. No original, onde está “escrita” e “escrevo”, eram “oração” e “rezo”.
“As raízes da escrita estão no passado, seu motor é uma percepção do presente e seu projeto é de futuro. Escrevo porque já escrevi antes e porque isso me conforta; o passado. Escrevo porque hoje quero agradecer, pedir, interceder, confortar e confortar-me; este é o presente. Escrevo porque espero um caminho bom para trilhar à frente e um Céu após isso; este é o futuro.”
Afinal, estes textos todos são o meu culto à Incerteza; estes textos são uma gigantesca oração. São minha bíblia particular, com as verdades que a mim cabem; o absolutismo na ausência de absoluto. A certeza da Incerteza.
Obrigado por lerem minhas preces, orações, minhas rezas.
Amém;
(Texto extraído do meu terceiro livro, Dezembro, escrito no já longínquo janeiro de 2015.)