Quando não se sabe ter
A tia Irene, que ia com pouca frequência às festas natalinas da família, não parava de choramingar por mais aquela injustiça. Em meio aos soluços, ela murmurava que era exatamente por causa desses aborrecimentos que sumia quando os festejos de fim-de-ano se aproximavam. Sem dinheiro para comprar presentes para todas as crianças, ela procurava passar a imagem de boa tia agraciando apenas o filho mais novo, ou o menos rebelde, do casal que estivesse sediando o encontro. Mas o espírito natalino não lhe sorria e a coisa nunca saía como esperava.
Remoeu o Natal de 1997, quando deu uma cueca com a estampa do Batman para o filho da prima Zuleica. Antes mesmo da chegada do novo ano, entretanto, soube que a peça virara proteção de frio para o canário-da-terra na varanda. Zuleica tentou explicar o fato dizendo que por causa da disputa dos filhos para usá-la, achou melhor atribuir à cueca uma nova (e cômica) serventia, colocando-a no ponto mais alto da casa para que os meninos, temporariamente, a esquecessem. O argumento, porém, não convenceu tia Irene que, ao ver a figura estilizada do morcego adornando a gaiola do passarinho, ficou extremamente ressentida e desapareceu nos Natais seguintes.
Reapareceu no fim de 2004, quando o filho da Eleonora, um garoto muito possessivo, ganhou da esforçada tia um conjunto de lápis de cor. Tia Irene acreditou que, com esse presente, agradaria a mais de uma criança, apostando num improvável gesto altruísta de Gustavo para com os irmãos e primos. Para sua tristeza, o garoto não apenas não dividiu como entrou numa áspera briga com os outros meninos que queriam emprestados os lápis. Por fim, um deles ainda escreveu na parede a infame frase: “a bruxa da tia Irene só deu presente pro Guto”. Tia Irene ficou horrorizada com o rabisco, mas raiva mesmo quem sentiu foi Eleonora. Nem tanto pelo teor do manuscrito, mas mais por ele ter sido feito na sala recém-pintada.
Porém, nada suplantava o que vinha ocorrendo no Natal daquele ano. Romeu, o filho de Silmara, era um garoto pacato e jamais dera indícios de que criaria problemas com qualquer presente que recebesse. Imbuída de uma imensa vontade de reverter o quadro de insatisfações, tia Irene viu que ele era o menino ideal para encerrar, de uma vez, todos os contratempos. Sua certeza, contudo, mesmo amparada pelo belo histórico do garoto, conhecido pelo completo desapego material, falhara: curiosamente, esta falta de ambição de Romeu a feriu mais do que em todas as outras ocasiões.
– Eu vi a meia que dei para o Romeu jogada embaixo da cama, babada, destruída… ele deu a meia para o cão! — queixava-se com a mãe do menino, que se aproximara do sofá onde a tia estava. — Em nenhum Natal eu vi tamanha falta de consideração. Perguntei nervosa: “porque você deu a meia pro Bilico?”. Falei para ele que o bicho havia levado a meia para debaixo da cama e que a destroçara por lá mesmo. E Romeu disse apenas: “a meia não é minha”. Ele ignorou o presente como quem ignora o nada.
Silmara lembrou-se de ter visto o cachorro andando pelo corredor com uma meia rasgada na boca, mas, para surpresa geral, quando ouviu o que havia ocorrido com seu filho, reagiu de modo totalmente contrário ao da desconsolada tia.
– Ele está melhorando, ele está melhorando! Graças a Deus! — disse com as mãos erguidas e sentou-se ao lado da melancólica tia.
A cena possuía contornos hilários, com a mãe comemorando uma aparente rejeição do filho e a tia invadida de tristeza justamente por isso.
– Silmara, porque você debocha de mim? Porque você ri quando estou triste? Sempre quis agradar as crianças desta família e nunca consegui. Romeu era minha última esperança. Logo ele, um garoto educado, que não é egoísta como os outros. Por que isso?
Silmara, tentando conter um pouco a sua alegria, notou que teria de dar alguma explicação àquela mulher que via nos presentes a única forma de conseguir carinho dos mais jovens. A mãe de Romeu pôs as mãos no ombro de Irene e, com paciência, abriu o coração:
– Tia, eu vou te contar uma coisa. A senhora pode até não acreditar, mas é verdade. O Romeu é um garoto especial: ele não sabe ter. Nunca soube. E não falo em sentido figurado, ele simplesmente não conhece a própria aquisição.
– Que isso, Silmara?! Que história doida é essa? Não precisa escarnecer do meu humilde presente inventando tolices. Não tenho dinheiro para grandes mimos, você bem sabe. Se pudesse, dava um videogame. Mas minha aposentadoria é irrisória…
– Não é isso, tia. Certamente Romeu teria adorado o presente se compreendesse o que é ganhar um. No seu estranho entender, a meia que a senhora deu era de todos e não apenas dele, não de uma única pessoa.
Silmara revelou que descobrira o problema poucos anos atrás, quando recheava com guloseimas o porta-lanche de Romeu e o mandava para a escolinha. Ao descobrir que quem comia os biscoitos eram seus amiguinhos, ficou zangada.
– Romeu, esse lanche era seu! Porque você o deu para os meninos da sala? Eles te ameaçaram? Roubaram seu lanche?
– Não, mamãe. Eles pegaram porque estavam com fome.
Ela odiava essas respostas. Mas, constrangimento mesmo foi quando Silmara teve de correr atrás de alguns pedintes que receberam de Romeu boa parte da comida que havia na despensa da casa. Nesta ocasião, a mãe do generoso menino, aos gritos pelas ruas, ainda conseguiu recuperar com os mendigos um pacote de macarrão, algumas laranjas e uma lata de ervilha.
– Por que você faz isso? Não somos ricos! Não vê que me entristece?
– Se estou feliz e eles também, por que só a senhora se magoa?
Como forma de castigo pelo feito, Romeu ficou proibido de brincar com Bilico por três dias, já que, como os pais sabiam, parar de fornecer mesada seria uma inócua punição.
Silmara falou também sobre os momentos de tensão que teve de superar quando tentava mostrar aos outros que Romeu não era um retardado.
– Estão pegando tudo do seu filho! Ele é um idiota!
– Não! Ele não é um idiota, ele só não sabe ter! Mas é difícil pessoas como vocês, consumistas e egoístas natos, entenderem! — explodia. No fundo, porém, ela queria que ele agisse como seus detratores: que soubesse obter, ter e manter. Tudo seria melhor.
Tia Irene pensou que Silmara estivesse bêbada, mas logo descartou esta hipótese, pois a sobrinha não apresentava hálito de álcool. Estaria o pernil da ceia estragado e, com isso, causando delírios na mãe de Romeu? Lembrou-se, contudo, que ela própria também o comera e que, mesmo assim, mantinha sua sanidade. O problema, então, seria o forte remédio que Silmara vinha tomando para combater a insônia. Era isso! Muito provavelmente era este o ladrão da saúde mental daquela mulher. Só isso poderia justificar a invenção de tão estapafúrdia história.
– Como não sabe ter, Silmara? Ele não fala, por um acaso, “meus pais” quando se refere a vocês numa conversa com outras pessoas? Isso é posse!
– Não, Irene, não fala. O mais perto que ele consegue chegar de exclusividade é através do pronome “nosso”. Romeu crê, dentro dessa sua completa ingenuidade, que todos têm ou deveriam ter de tudo, e não apenas ele.
Nesse momento, Silmara mudou de expressão. Um laço de tristeza quis dominá-la.
– A professora do Romeu disse que ele precisava de ajuda especializada. Justamente alguém que o fizesse entender o significado das palavras “meu” e “minha”. Ele até sabe pronunciá-las, mas desconhece o que querem dizer. Na reunião com os pais de alunos, a diretora disse que uma criança alfabetizada como o meu filho já deveria saber distinguir o “ter” do “não ter”. Com oito anos de idade ele não poderia continuar confundindo coisas tão antagônicas.
Alguns estranhavam as duas conversando com expressões tão mutantes: ora tia Irene chorando convulsivamente com Silmara rindo, ora tia Irene pensativa com Silmara fazendo cara de tristeza. Mas, todos achavam que eram as emoções do Natal e a expectativa do ano novo que estavam mexendo com a cabeça de ambas. Não havia outro motivo para nesgas de apatia, afinal, havia luzes piscantes, presépios bem montados, cantigas aconchegantes, encontro de familiares distantes e comida em abundância naquele lar.
– Por que você ficou feliz quando eu reproduzi a resposta do Romeu? Ele rejeitou um objeto. Por que você disse que ele está melhorando? Quando eu te contei o que ele disse pra mim, “a meia não é minha”, você vibrou…— questionou Irene, querendo entender onde estava a lógica naquela alegria.
O sorriso voltou ao rosto da mãe:
– Não percebe? Romeu parece ter entendido, por meio da negação, o que é ter. Quando disse “não é minha”, ele percebeu que algo pode, de modo inverso, ser seu. Não sei como a senhora fez isso, que artifício usou, mas a meia despertou algo nele, algo que até então não existia.
Tia Irene estava definitivamente espantada. Procurou Romeu com os olhos e o encontrou servindo doces a alguns convidados. O que era uma cena incomum, mas possível, de uma criança muito bem educada, logo ganhou outra perspectiva: havia ali um ser humano completamente diferente. Diferença esta que, com alguma tolerância, soava bonita e inocente a um menino, mas que seria verdadeira catástrofe quando este se visse adulto. Que tipo de marido ele seria se não soubesse ter uma mulher? Isso sem falar no sofrimento pelo qual passaria para conseguir emprego e juntar dinheiro. Era terrível constatar, mas ele precisava, urgentemente, abrir sua cabeça para o ter, pois, de outra forma, se tornaria uma aberração.
– Depois de uma bateria de exames — continuou Silmara –, concluíram que não havia tratamento médico possível. Alguns pedagogos afirmaram, inclusive, que nunca viram nada igual, a não ser em estudos de tribos indígenas primitivas. Na modernidade, enfatizaram, isso poderia ser uma espécie de doença perniciosa ainda não catalogada. Se tivéssemos sorte, disseram ainda, a única coisa que poderia fazê-lo melhorar seria o passar do tempo. Só Deus sabe o quanto rezei para que esse momento chegasse, o dia em que meu filho, finalmente, aprenderia a proteger seu patrimônio e descobriria, então, que seu lanche é mesmo seu, que seus pais são seus, que sua roupa é sua, seus presentes são seus e… sua meia… — Silmara emocionou-se –, que seu par de meias… dado por sua tia querida… é seu!
Tia Irene abraçou Silmara, se levantaram e foram ligeiras até o quarto onde tudo acontecera. No trajeto, esbarraram em alguns parentes que ignoravam aquela incrível história, permanecendo imersos em seus próprios casos, tecendo esquecíveis comentários sobre assuntos hipoteticamente felizes.
Felicidade mesmo foi o que Silmara experimentou quando viu o presente dilacerado. Ali ela decretou que aquela caminha bege e o roto pé de meia repousando solitário sob ela deveriam ser preservados como símbolos de uma grande mudança, pelo menos até o ano novo.
– Tia Irene, neste Natal você me deu um presente muito maior do que essa meia, muito maior que qualquer outro. Você, de algum modo, trouxe o meu Romeu ao convívio social.
Tia Irene encheu-se de vaidade e satisfação. Sem gastar quase nada com um presente, ela finalmente acertou. Ficou muito orgulhosa com a chance que criou — quem sabe um pequeno milagre de Natal — para que seu sobrinho pudesse vir a ter, enfim, inúmeras coisas, só suas, na vida.
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