Quando se fala em alma

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
2 min readJun 5, 2021

Para alguém que lidava com matérias exatas, falar em transcendência era como entrar no tedioso campo do amor. Poesias, abstrações, contemplação de um amanhecer que seria lindo, se antes não fosse comum. Para Monalisa, não havia o que discorrer sobre assuntos que não lhe forneciam resultados práticos. Talvez por isso, seu último grande relacionamento tenha sido virtual, numa mesa de xadrez, com um parceiro desconhecido do Canadá.

Trocou algumas palavras antes de executar dois movimentos que levariam ao xeque-mate, palavras que indicaram que ali atrás poderia existir uma pessoa atraente não apenas por suas habilidades no jogo, mas, quem sabe, um coração também interessado em conhecer melhor o outro. Era do tipo bem humorado, “esse bispo destruiu minha coluna de peões”, e Monalisa sorriu.

Logo se desligou e tudo passou a ser apenas mais uma lembrança de um sábado de noite fresca e até agradável. Suas convicções eram bem conhecidas entre os colegas. Não se sentia envolvida em esquemas de sedução, olhares faiscantes, pulsares cardíacos denotando um interesse bobo e efêmero, tudo que, em verdade, não passava de carência, coisa que ela só tinha pelo café.

“Será que isso não é uma defesa?”, alguém perguntou. E ela se irritava. Um incômodo acharem que precisava de uma pessoa para lhe entregar felicidade. E ria, mas se pegava pensando no que era debatido. E vinha a tal da dúvida sobre felicidade, algo que, isso sim, ela detestava. Reafirmava que era feliz, que era, sim, muito feliz, e isso tinha de ser propagado aos seus contatos, que estava feliz em não estar com alguém, e optava por dar peso aos termos “prisão” e “dependência”, enquanto aliviava a barra de “solidão” e “alma”.

Brilho no olhar e uma companhia boa... Estar no tabuleiro ou no happy hour era mais agradável do que um passeio de mãos dadas pela orla. “Parece que dessa vez você perdeu”, disse o jogador sueco, com seu já conhecido inglês técnico e frio. Ela o derrotara pelo menos seis vezes antes, pois se lembrava da imagem do trenó azul no perfil. Entrou em logoff sem nem mesmo se despedir. Não tinha mais vontade de entregar seu tempo a estranhos.

Aquela noite foi atípica. Monalisa sentiu vontade de falar com alguém pessoalmente, pedir algum conselho, ainda que essa pessoa não a beijasse ou articulasse grandes galanteios, coisa que ela fazia com suas plantas e que, passava a admitir intimamente, sentia vontade que um terceiro fizesse com ela. Inúmeras máquinas, cálculos e planilhas, a busca pela eficiência e um vazio completo em todas as suas áreas não materiais. A máquina de expresso ecoou o apito. Tantas almas sozinhas e ela não queria estar na estatística.

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