RAÍZES HUMANAS
4–5–18, sp
Quem está dentro do carro e vai guiando por essa estrada e olha pela janela em direção ao acostamento, vê o homem de barba preta com fios grisalhos, e moletom preto, e calça cinza cheia de sujeira, e mochila nas costas e cabelo cheio de nós caminhando no sentido contrário, mas é provável que de dentro do carro não se note nada disso, apenas se perceba que há um homem no acostamento, e seus detalhes serão ignorados, porque o carro vem rápido pela estrada e os olhos do condutor devem ficar atentos ao caminho que ele trilha e o tempo que ele tem para olhar para esse homem no acostamento é apertado. Os passageiros que podem notar melhor, ver as roupas que o homem usa, ver o sol que faz lá fora, ver o brilho da luz sobre o asfalto cinza, ver o pedregulho que permeia todo o acostamento, sendo arremessado para fora da estrada pelos pneus dos carros, e pode ver, também, os pés descalços desse homem, que dá passos curtos e mantém os olhos sempre na linha do horizonte, firmes à frente.
Os carros vêm a uma média de cem quilômetros por hora nessa estrada, e, levando-se em consideração o raio da roda e a largura do pneu, conclui-se que esses pneus fazem uma porção de voltas por segundo e uma centena de porções de voltas por minuto, e com esse sol ao meio-dia batendo direto no asfalto da estrada, a temperatura na borracha é demais de elevada, e é possível extrair um número exato para dizer é isso, são tantos graus célsius, mas é o nosso ofício contar histórias e não fazer contas, então basta saber que é grande o calor suportado pelos pneus. É por isso que eles são feitos de um material resistente, preto, duro, e precisam ser trocados constantemente, e custam um bom troco. Porque estar em contato constante com o asfalto quente corrói seus corpos e dizima suas durabilidades, inviabilizando a sua utilização. De dentro do carro quem vai passando não pensa nisso, é só um valor a ser pago quando visitar o mecânico. O homem, porém, não possui pneus, nem oficina, ele caminha com seus pés desnudos sobre o mesmo chão que o carro.
Os pezinhos de um bebê são frágeis para o solo quente e irregular, as pedrinhas, a poeira, os restos de comida, as plantas, os galhos machucam sua pele macia e virgem. Seu corpinho está acostumado com o calor do útero, o líquido envolvendo todo o seu ser, a umidade como uma manta protetora, o umbigo recebendo os alimentos da mãe. Depois está exposto ao mundo, seus olhos sofrem com a claridade, os ouvidos assustam com cada barulho, a boca se regozija ao encontrar o bico do seio e sugar o leite. Então precisa pôr os joelhos no chão para engatinhar. Mais tarde, pôr-se de pé. A consequência é o choro sentido de quem não conhece outra forma de se fazer entender.
Difícil saber o que se passa na cabeça de um bebê ao lutar para conseguir se manter de pé. Suas pernas ainda não são fortes o suficiente, seus joelhos são vacilantes, e o equilíbrio está apenas começando a se formar. Porém, ele tenta diversas vezes, caindo de bunda, erguendo-se mais uma vez, dando um, dois, três passos, e tombando para frente. Abre-se um berreiro, e depois de ser ninado, volta para o começo. Até se tornar natural e estar de pé ou deitado ou sentado é indiferente. Cada passo não representa nada além do movimento. Não é mais uma conquista. Nos primeiros, a apreensão é de todos em volta. Protegem seus pezinhos com sandálias para que ele ande pelas calçadas sem risco de se machucar. A partir disso é correr e tropeçar e ralar os joelhos e se pendurar e escalar e crescer. Já faz muito tempo que esse homem no acostamento deu seus primeiros passos. Ele é um senhor, sua pele está flácida, seus olhos já não veem tão bem, seus joelhos também vacilam, mas não é falta de prática, é excesso, tudo gasto e cansado, suas costas estão um pouco encurvadas, sente dor nos músculos e na coluna, e o pouco que é capaz de enxergar está adiante, seguindo em linha reta.
Agora, o que é que ele vê? Não, não é isso, o mais importante é: o que é que ele quer ver? Vão passando muitos carros e ele continua olhando para frente. Impossível saber para onde ele vai sem se imiscuir em sua intimidade mental ou perguntar-lhe diretamente, mas não podemos fazer tais intromissões e os carros não podem se atrasar em suas viagens, e andando ninguém está, além dele. Continua andando, e não se sabe se tem ou não pressa, pois seus passos são curtos, mas rápidos, se move pouco a cada passada, mas dá várias passadas em pouco tempo. Pode ser, também, a forma de aliviar a dor de pisar no asfalto fervendo, cheio de pedregulhos que forçam suas pontas contra a sola do seu pé, e agora pode até agradecer por ter uma pele tão rachada e dura, cheia de cascas, que afasta um pouco a sensação dolorosa de ser perfurado por pedras pontiagudas e efervescentes. Quando um pouco crescidas, as crianças acostumam seus pés a todo tipo de solo. Vão de lá para cá com os pés descalços, sujos de terra, e com o tempo já não se incomodam mais com as pedras, com as folhas, com pequenos pedaços de vidro, vão pisando em tudo, acostumados a sensação de dor que ignoram. Pisam com esses pés descalços nos campos de futebol improvisados sobre o concreto e chutam as bolas com seus dedões desprotegidos. Se o sol é violento e não dá trégua, o jeito é ficar dando vários pulinhos, para não deixar queimar muito de cada vez. Ou correr, sempre, sem ficar parado, que não dá tempo de castigar a pele dos pés. Para eles, todo chão de pregos é feito tapete do mais suave algodão.
Pelos que vemos dos pés desse homem, dessa infância ele não passou para uma vida adulta comum. A vida adulta comum é feita de sapatos e meias, os pés perdem a resistência, ficam acostumados à proteção dos calçados e perdem o contato com o mundo. É nessa mesma época que começamos a esquecer quem somos. Já não pisamos mais na terra em que vivemos, há sempre uma distância, a distância da sola do sapato, da borracha do chinelo, do piso frio de nossas casas nos separando do solo desse mundo em que vivemos. As raízes não são cortadas, mas pela falta de cuidado, perecem. Vão apodrecendo, sem que nos demos conta, e, quando notamos, se notamos, já não há nada nos ligando ao coração, e o que nos resta é esperar o ressecamento que virá até nós para, enfim, morrermos. É a folha que cai da árvore e vai perdendo sua cor, ficando quebradiça, leve e sem proteção, arrastada pelo vento para o esquecimento, enquanto na árvore nascem outras em seu lugar. Esse homem tem o pé cascudo, rachado, enegrecido pela sujeira de todos os lugares por qual passou. Nunca se esqueceu de quem é, porque nunca teve a oportunidade de descobrir.
Será isso que ele procura olhando em frente? Seus olhos castanhos estão firmados no horizonte porque, na verdade, viram-se para dentro? O fim da vida desse homem está próximo, não requer um doutor para atestar isso, podemos dizer com bastante segurança que o seu tempo por aqui não se prolongará por muito mais. Ao se aproximar do fim do círculo, estará ele tentando dar uma espiada na linha de partida? Antes de completar a volta, poderá ver o começo de tudo e, quem sabe agora, tanto tempo depois, tantos passos depois, será capaz de entender alguma coisa disso tudo o que aconteceu. Mas prestemos atenção, pois os seus passos estão se acelerando.
Ele agora está correndo. Sua mochila balança nas suas costas e ele corre com as pernas duras, os olhos arregalados, e a dor ficou esquecida por um instante e o chão que ele pisa não é mais de asfalto, de cimento, de concreto, não é quente, nem é frio, ele flutua, correndo sem parar. E nos seus olhos vê-se o reflexo do seu destino. É um longo gramado que se estende ao lado da estrada, e para lá ele ruma. Ao chegar na divisa entre o acostamento e a grama, para e encara, muito sério, o campo que vê à sua frente. Seu rosto está tomado pela tensão, seus lábios murchos são lambidos pela língua seca. Põe o primeiro pé na grama e o arrepio toma seu corpo magro e vagabundo. Põe o segundo pé e o que nasce do seu rosto é um sorriso de boca fechada. A grama está úmida e sobe por entre seus dedos com micose, ele sente a água e a textura fofa do solo, e agora ele não anda, nem corre, ele dança. Ele saltita e rodopia e abre sua boca em um enorme sorriso que não tem um dente sequer.