Regina Chauí não existe

Ailton Mesquita
Ensaios sobre a loucura
7 min readJun 30, 2021
Imagem: Unsplash

Parte 1

Surto

O grito veio de algum lugar bem próximo. Se não fosse isso acho que eu nem tinha acordado hoje.

Alguém estava surtando. Pelo ritmo da voz dá para reconhecer: o som rasgado na garganta, meio entrecortado, imagino que estava se debatendo ou se jogando no chão.

Não me importo com quem gritou, fico atento porque aqui se ouve poucos barulhos externos. Quando eles aparecem eu aproveito ao máximo porque posso passar dias e dias imaginando e criando hipóteses para eles.

Parte 2

Computador

Antes o computador tinha outra utilidade: servia para fazer exercícios de alfabetização, alguns joguinhos de lógica. Depois a máquina, que tem a metade do meu tamanho, ficou meio abandonada. Então introduziram a Rede Social, que hoje é uma das únicas funções do computador (ele também liga e desliga automaticamente para indicar a hora de acordar ou dormir).

Com a Rede Social eu posso conversar com outra pessoa. É interessante ter contato com alguém, embora a gente não tenha muito o que dizer, já que os dias de quem vive num ambiente assim não permitem muita variedade de experiências.

O meu contato se chamava Nil. Ele disse que chegou a ouvir alguns ruídos externos nos mesmos horários que eu, mas no caso dele era uma espécie de choro de criança. O Nil não tinha muita habilidade para fazer suposições, então eu é que imaginava as possibilidades, criava nomes para pessoas hipotéticas, tudo.

Como a minha saúde é meio frágil — diferente do Nil que, pelo que ele diz, é bem saudável — tentamos fazer um experimento: ele daria um grito e, de acordo com a intensidade, eu poderia dizer se estávamos próximos ou não.

Poucos minutos depois chegou a mensagem na Rede Social: “ouviu?”. Não ouvi. Ele repetiu a pergunta, dizendo que tinha empilhado a estante e a cadeira sobre a cama (os mesmos móveis que tenho) para ficar mais próximo da janelinha no alto da parede e gritou com força. Dessa vez eu tive a impressão de ouvir um som abafado.

Fiquei empolgado com a possibilidade de ter alguém nas redondezas, porém foi a última mensagem que recebi no Nil. A minha Rede Social foi desligada por alguns dias e quando retornou eu tinha um novo contato: a Regina. É a companhia que tenho até hoje.

Parte 3

Estante

Pelo que ando conversando com a Regina, tudo em nossos quartos também é igual. A distância de cinco passos entre cada parede, a cama, o computador, o banheirinho e a janela inalcançável. Ela passou a me chamar de girafa porque eu disse que nossos quartos eram como cativeiros de girafas com paredes brancas, e elas, sim, podiam apreciar a paisagem pela janela.

Temos alguns poucos livros, como os que falam sobre o corpo humano, animais e natureza, e um ou outro de alfabetização que talvez tenha usado quando era menor. São esses livros que dão uma noção de como seria (ou como é) o mundo. Aquele grito de surto talvez tenha sido de alguém que leu esses livros e teve vontade de conhecer as belezas naturais — ou só queria morrer logo e fazer parte do que restou, se tiver algum resto lá fora. Não faz diferença, os livros não me dão nenhuma dessas vontades.

Tem um livro interessante que conta uma história sobre pessoas, famílias, amores. O nome é Dom Casmurro e foi escrito por um homem chamado Machado de Assis. Não sei se é uma história de pessoas que existiram ou se é só um escritor inventando um mundo da cabeça dele. Achei estranho porque a Regina não tem esse livro, mas todos os outros que tenho ela também tem. Gostaria de ter mais livros com histórias de pessoas que conversam entre si, já que por aqui a gente não conversa muito.

Parte 4

Saudade?

A Regina é inteligente, fala sobre sentimentos como ansiedade, solidão, amor. Com isso eu acabei reparando nessas coisas em mim também. Passei a sentir falta de me comunicar com ela, principalmente porque ela não aparece na Rede Social todos os dias. Durante sua ausência eu refazia nossas conversas mentalmente para passar o tempo. Às vezes releio algum livro que eu ainda não decorei.

Penso em fazer tranças nos cabelos da Regina, como faz o protagonista de Dom Casmurro. Mas essa lembrança, essa falta — que talvez seja saudade — é sempre interrompida quando me pego imaginando se ela se comunica com outra pessoa. Cheguei a perguntar isso a ela, mas com um pouco de receio, pois de tanto pensar e repensar os conceitos sobre sentimentos que ela me falava fiquei ansioso.

Regina disse que tem outro contato chamado Ari, com quem conversava esporadicamente, mas não tanto quanto comigo. Depois disso tive raiva do Ari. E um pouco da Regina. Será raiva mesmo? Pode ser outro sentimento que ainda não aprendi. Aliás, pode ser também o ciúme, igual o mal que não sai da cabeça do Bentinho, do livro.

Parte 5

Os “de branco”

Quando começou a sair um mau cheiro do computador, já imaginei que ele seria substituído. Nesse dia o prato de comida foi deixado na porta e o escondi debaixo da cama. Às vezes o gosto da comida muda, e quando isso acontece eu durmo mais que o normal. É assim: se a estante quebra ou a privada entope, o problema se resolve da noite para o dia e só percebo depois. Eu estava certo em desconfiar da comida. Comprovei isso porque no mesmo dia em que deixei de comer, vi que os “de branco” entraram no quarto para checar o computador.

Duas pessoas, cobertos até o pescoço com uma roupa de tecido branco que faz barulho ao dobrar. As cabeças não são cobertas, mas usam máscaras que tapam boca e nariz. Notei que era um homem e uma mulher (ela tinha como diferencial várias características de corpo feminino, como nos livros de anatomia). Permaneci deitado sem me mover. Eles não se falaram durante a manutenção da máquina, apenas anotavam algo e usavam algumas ferramentas. Enquanto ele religava o computador, ela sentou na ponta da cama e colocou alguns fios e canetas de cores diferentes sobre o colchão. Pude puxar com o pé uma caneta vermelha. Fizeram uma limpeza rápida e saíram.

Parte 6

Ideia da Regina

Eu já converso com a Regina há um bom tempo, guardei segredo sobre a caneta porque tive receio de que nossa conversa na Rede Social fosse vista. Não queria que me tirassem ela como fizeram com o Nil. Mas esse roubo foi uma aventura muito instigante, e não pude esconder por muito tempo. Ela ficou curiosa sobre os “de branco”, mas pedi que me prometesse que não faria o que fiz para vê-los.

Foi ideia da Regina que eu usasse a caneta para fazer estas anotações como forma de registro. Escrevo nas páginas do meu Dom Casmurro, que tem capítulos curtos e sobram alguns espaços em branco que cabem estas linhas de texto. Se você está lendo estes registros, é sinal de que alguém achou o livro (recomendo que leia antes a história do próprio livro, que é mais interessante).

Parte 7

Irmão

Já são vários dias sem falar com a Regina. Acho que já passaram pela minha cabeça todas as combinações de possibilidades que se pode fazer para justificar esse sumiço. O que mais me deixa aflito é a hipótese de terem nos desconectado da Rede Social. Ela e o Ari conversam enquanto isso?

Ouço de memória aquele grito de surto que me acordou no outro dia. Agora penso: será que foi de saudades ou de ciúmes? Poderia ser alguém sentindo o que sinto, talvez um irmão. Hoje eu poderia dar um grito daqueles, ou um até pior.

Parte 8

Surto silencioso

Não sei mais há quantas semanas eu olho a Rede Social e não tem nada além da mensagem: Regina Chauí: “Até mais, girafa!”. Até quando é “mais”? Queria comparar com a última mensagem que recebi do Nil, mas não lembro mais o conteúdo. Acho que cobro a existência de Regina mais de mim do que dela. Quem sabe ela se importe pouco comigo, como eu me importava pouco com o Nil.

Também não me importo mais com refeições diárias (costumo descartar tudo no banheiro assim que chegam). Os “de branco” entram aqui com muito mais frequência para desentupir o vaso. Já não se importam mais se os vejo ou não por conta do meu estado frágil. Não sei se já desistiram de mim, pode ser que também nunca tenham se importado. Parecem fazer um trabalho mecânico de manter o ambiente e eu sou só mais um item. A Regina pode ser — ou ter sido — só mais uma unidade para a manutenção da Rede Social, como os livros são unidades da minha estante. Talvez ela tenha sido um sistema exclusivo do meu computador, um produto só meu, igual a este livro do Machado de Assis.

Minha rotina está reduzida a levar meu corpo até a porta, descartar a comida, pegar o livro na estante e tentar fazer estas anotações com pouco a dizer. A tinta da caneta já não dá para muita coisa.

Hoje não dei conta de pegar o prato na porta. Queria fazer uma trança no cabelo da Regina.

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