Sábado, 29 de Setembro de 2018

Tandra
Ensaios sobre a loucura
4 min readSep 28, 2018

O tempo havia parado. Olhar para ela fazia os segundos se prolongarem, mais que a realidade poderia suportar. Isso gerava algumas consequências, como por exemplo ter todos barulhos e pessoas reunidas naquele café e só conseguir ouvir a respiração dela, ou perceber que está há cinco minutos encarando seus olhos enquanto ela espera uma resposta sua.

Eu não estava sendo negligente, pelo contrário. Corpo e mente voltados para ela, mesmo quando ela tentava intervir. Ela continuava a insistir naquela conversa, mas eu já sabia aonde aquilo iria dar. Ela iria dizer que precisava se afastar pois havia outra pessoa, que seus princípios não lhe deixariam ficar comigo, iria me bater, acoitar, arrancar minha pele e quebrar minha alma sem nenhuma compaixão. Depois iria me dizer que me amava e que nunca amou alguém daquele jeito, e iria exigir que eu acreditasse, mesmo segurando as ferramentas de tortura que acabara de usar em mim. Contudo mesmo machucado, eu não queria aceitar que aquele momento acabasse, eu precisava fazer alguma coisa.

— Escuta, eu sei exatamente aonde você quer chegar, e ok, se é isso que você quer eu vou te deixar ir — a surpresa em seu rosto me deixou desconcertado, porém continuei — posso fazer um pedido? apenas um.

Ela assentiu curiosa e assustada.

— só por hoje, vamos viver o que a gente sabe que talvez nunca mais viveremos. Vamos sair dessa cidade, esquecer disso tudo que nos prende. Ou vamos ficar em casa mesmo, pode ser vendo um filme, podemos fazer ou não sexo, amor se preferir, a gente abre aquele vinho que te falei, posso cantar aquela música do Keane que você tanto gosta no violão e juro que dessa vez não vou zoar sua desafinação. Ou ainda podemos só ficar na sacada vendo o céu, você não adora olhar para as estrelas? te empresto meu colo, e ainda posso contar algumas histórias da minha última viagem, você sempre quis saber, eu conto tudo. O que acha?

Ela já tinha aceitado, só não sabia ainda, até por que precisava ser durona, como sempre foi.

— ok, mas terá que me prometer que quando acordarmos amanhã, terá acabado tudo, promete para mim?

— Prometo, agora vamos sair daqui

E Fomos, ela escolheu ir para casa. Ouvimos algumas músicas antigas, descobrimos algumas novas e até nos arriscamos em compor alguma coisa, sem sucesso. Bebemos vinho, tequila e amarula, no dia seguinte iria descobrir que esse mix de bebidas não foi a escolha mais sensata. Contamos estrelas, discutimos política, ela ganhou, ela sempre ganha. Jogamos poker, ela perdeu, ela sempre perde. Relembramos do dia que nos conhecemos e como aquilo foi bem incomum, já que foi em um velório. Fizemos amor e depois sexo.

Quis que a noite durasse a eternidade, não queria dormir, era como se eu soubesse que se eu dormisse, morreria. Resistir o máximo que pude, mas a madrugada já avançava e ela já tinha dormido em meus braços. Dormi também. Acordei de supetão, tentando achá-la com meus braços. Não achei. Levantei assustado, mesmo esperando por aquilo. Contudo, logo o cheiro de café tomou conta do meu olfato. Ela ainda estava la. Fui até a cozinha.

— Bom dia! — disse ela

— Sabe o que mais gosto?

— Não (risos), não faço a menor ideia, o que é?

— isso, ouvir seu bom dia, fico imaginando se será acompanhado de risos como esse, ou se será mal humorado. Se virá acompanhado de um gemido ao se espreguiçar ou não…

— hahaha então está explicado

— o que está explicado?

— seu fascínio por dar “bom dia” para todo mundo na rua. Ninguém dá tanto “bom dia” de manhã, como você

— claro que não, até porque, não se dá “bom dia” a tarde ou a noite

Tomamos nosso café acompanhado de risos e esquecimentos, esquecimentos de uma vida que tracamos do lado de fora, mas que já já baterá a porta a chamando para ir embora. Ficamos horas conversando, depois decidimos almoçar juntos, uma última vez, foi ideia dela. Estava com ressaca, mas valeria a pena. Fui tomar banho, ela viria depois, tinha que fazer uma ligação.

— que tal comida japonesa? viu que abriu um restaurante ao lado do catedral? — gritei do banheiro

Silêncio!
Silêncio!
Silêncio!

Ela se foi.

No aparador ao lado da porta da sala, havia uma carta. Relutei em ler como quem luta para não ouvir a sua sentença de já sabida morte. Inevitável. É a sensação de estar jogado a própria sorte numa história sua que, no entanto não é você quem escreve.

“Eu nem queria ter ido ao velório. Pareceu-me meio macabro ir a um velório de um morto e uma família que nunca vi na vida, mas você me conhece, eu gosto de coisas insólitas. E lá estava você todo chorão, um brutamontes chorando feito bebê, me apaixonei naquele momento. Desculpe ter ido me consolar contigo, bem… agora já sabe que só inventei isso para tentar uma aproximação. Obrigada por cuidar de mim, mesmo quando eu não o fiz. Obrigada por ri do meu humor negro, só você o entende. Obrigada por ouvir comigo nossa música brega. Enfim, eu amo você e tenho sérias certezas que jamais te esquecerei. Desculpa não te esperar sair do banho, não conseguiria dizer adeus.”

Sábado, 29 de Setembro de 2018

Não me orgulho em dizer que novamente sou aquele brutamontes chorão da carta. Choro de abandono dói, e eu chorei, de soluçar. Copiosamente. Até que que me dei conta, que alguns soluços não eram meus. Abri a porta instintivamente e la estava ela, sentada no chão. Uma torturadora em prantos.

— Desculpe, eu não consigo dizer adeus

— tente! — sem coragem, a encorajei, com medo de de fato encorajar.

— desculpe, eu me expressei errado. Eu não quero e não vou te dizer Adeus

Choro de felicidade também dói, acabei de descobri isso.

— você viu que abriu um restaurante japonês do lado da catedral? — perguntei

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Tandra
Ensaios sobre a loucura

Nem sempre escrevo tudo aquilo que sinto. Mas, sempre sinto tudo aquilo que escrevo.