Ser no paradoxo: breve ensaio sobre as profundezas

J. Fontalba
Ensaios sobre a loucura
4 min readJan 23, 2018

Nas profundezas não somos coisa alguma. Somos um poço de paradoxos, uns deles morbidamente inertes, outros em ebulição constante, mas que nem sempre são visíveis aos que por nós passam, perpetuando assim a mentira absoluta que é a coerência humana, de sentimentos, de pensamentos, de acções.

A nossa totalidade é tremendamente interessante para nós, mas um caos medonho e aborrecido para os outros. Por isso escolhemos focar o nosso olhar na sua superfície, que nos permite socializar, racionalizar e conviver. Sob a pele jaz um monstro, que pode ser maléfico ou não, mas certamente, sempre, um Leviatã, um icebergue, um tudo-nada mesclado com o absoluto.

Um escritor (terá sido Henry Green?) afirmou uma vez, algo embaraçado, que a única pessoa sobre a qual lhe interessava escrever era ele próprio. Os outros não lhe eram relevantes como tema de devoção interpretativa, de digestão de características endémicas ou adquiridas, os outros eram, talvez, figurantes.

Foto de Filip Kominik via Unsplash

Partilho integralmente desta perspectiva. Quando era criança a minha noção do mundo baseava-se num conceito totalmente consciente de que este só estava em movimento quando eu estava presente. Ao sair da sala de estar, essa realidade deixava de existir — não para mim, mas em termos absolutos — , no universo já não havia sala se eu lá não estivesse. Porventura não estarei só nesta visão, mas esta é, se atentarmos bem, uma verdade. No meu universo próprio, deixa de existir tudo aquilo onde não estou, espacial ou emocionalmente. Que haverá de errado nisso? Para uma criança, ou pelo menos para mim, todos eram figurantes e os espaços não mais do que cenários débeis e que desapareciam instantaneamente ou eram re-criados se voltasse a entrar na sala.

Ao nível mais básico, mas talvez mais ilustrativo e real, o que nos interessa somos nós próprios e, apesar daquilo que os axiomas perpétuos que ecoam por catedrais idas e por vozes ocas, não temos talvez de nos interessar mais pelos outros do que por nós próprios. Talvez seja esse um dos gestos mais altruístas que se possa imaginar.

É totalmente falsa a noção de interesse puro no outro

A vida de outrem nada nos diz, a não ser naquilo em que sentimos empatia, naquilo que nos toca, por semelhante. Ou naquilo que nos toca por medo. Só vivemos o outro na medida daquilo que somos. Um bom populista explora este nexo e insinua-se parecido connosco. Passa a interessar-nos porque vemos nele uma parte de nós. Até mesmo um voluntário numa missão humanitária vê em quem ajuda uma extensão de si, ou de alguém que lhe é querido, ou odiado, ou porque não quer nunca chegar ao estado de quem procura a sua ajuda. É totalmente falsa a noção de interesse puro no outro, como era totalmente desinteressante o que se passava na sala de estar quando não lá estava. Se não temos uma ligação subterrânea, profunda, de empatia ou dependência ou de outra corda qualquer cuja amarra jaz em nós, e que se prende sempre, de facto, os outros são seres que pouco nos importam.

Morreram seiscentos chineses num deslize de terras. Apatia. Morreu um europeu, pior, morreu um português, pior, morreu um parente afastado, pior, morreu-nos um filho. O grau de dor e de preocupação está só e apenas ligado à proximidade que temos, ou julgamos ter, da tragédia. Os seres humanos não são todos iguais, nem todas as vidas valem o mesmo. Quanto mais próximas de nós estão, mais valiosas são e no conflicto inevitável com outras cadeias de valor de vidas, nascem as guerras que, por absurdo, são o acontecimento que mais valor retira a cada vida e que adiciona vários zeros à direita do número de gente que desaparece.

só quem chega ao fundo do seu poço de paradoxos é que pode perceber o mundo externo

O António Lobo Antunes diz que os bons escritores escrevem sobre o que se passa dentro de si e os maus escritores sobre o que se passa fora de si. O que eu diria é que só quem chega ao fundo do seu poço de paradoxos é que pode perceber o mundo externo, ele próprio paradoxal por natureza. Mas o paradoxo pode ser um complemento, como vê o Taoismo, visto que o preto não existe sem o branco e que o branco contém todas as cores que, se juntas em pigmento, se tornam preto.

Foto: pixabay

Assim, eu não posso viver na ideia de que sou uma pessoa boa. Não sou. Nem de que serei justo, sou profundamente injusto. Mas posso viver, calmamente, com a ideia de que sou imperfeito. Sou: não contenho em mim elementos puros. Sou pardo e confuso. No entanto é a imperfeição somada, que no seu todo cria, num leque de mosaicos e de fractais, um mundo que é equilibrado. Se quisermos aceitar que equilibrado é o mesmo que perfeito, pois então temos um mundo perfeito. Seres humanos perfeitos, pela soma e conjunto, tão orquestrado quanto desregrado, das suas imperfeições.

Madrid,
Setembro 2014

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J. Fontalba
Ensaios sobre a loucura

Poeta. Livro “A Primeira Manhã — Antologia 2012–2017” disponível em Novembro de 2018.