Sonhos 2

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
8 min readJun 27, 2020
Dora Maar

“Ele enchia meu prato. ‘Com o quê?’, perguntou o doutor Rudolph. Bem, é complicado explicar, mas eu notava que ele enchia meu prato com vaidades. ‘Com vaidades? E como você sabe que eram vaidades?’ Porque eram doces, mas ao mesmo tempo me causavam algum mal estar.”

A primeira parte da história poder ser vista neste link:

Havia saído para fazer um homicídio. No jargão jornalístico é assim que se diz quando se cobre uma matéria sobre assassinato. No caso em questão, tudo indicava ter sido barbárie motivada por paixão, o que não deixava de ter seu grau de incoerência, o egoísmo que não permite que se ame outro. Desfecho trágico e eu lá, tentando encontrar no meio do cenário mórbido alguma coisa para agradar o redator, pensando na manchete. “Traição termina em tragédia”, “Homem mata mulher após descoberta de caso”, “Tiros colocam fim a romance paralelo”, algo que fosse bem impactante, comercial também, para tentar se sobressair a tantos outros que chegavam com o mesmo teor.

O perito mexia no cadáver sem carinho aparente, buscando os rasgos por onde vertia o sangue. Foi quando notei na mão inerte uma aliança fina, objeto que simbolizava confiança, peça nunca usada por mim, mas que me causava boa impressão. Tornou-se, então, uma pequena honra poder admirar aquela moça em seu sono sem sonhos. Mas, assim como o legista, eu também não tinha de dar contornos emotivos ao contexto, até porque tragédia como aquela não era a primeira e certamente não seria a última. Sendo assim, não adiantaria romantizar a cena, mesmo estando tão evidente que a plasticidade daquela mulher, de alguma maneira, contribuíra para seu fim. Tinha de me ater aos compromissos técnicos e redigir, dentro da minha parcialidade, linhas que sinalizariam a maldade humana. As pessoas gostam disso, de ver a dor alheia. Inserir nuances literárias, por mais tentador que fosse (e era), seria entrar na seara dos articulistas da redação, os que entendiam como influenciar, que ganhavam substancialmente mais e eram, em tese, jornalistas capacitados para filosofar sobres os crimes passionais.

Na entrevista com o vizinho, constatei que o problema possuía profundidade. Segundo soube, a vítima deixara de pagar o aluguel quando começou a ter um caso com o proprietário, mas não revelou se havia troca de favores ou se de fato desenvolveram sentimentos. “Ninguém tem amores genuínos assim, não é meu amigo?”, disse ele, abrindo sorriso em desacordo com o ambiente fúnebre. E tinha total razão, pois afinal, o que eram sentimentos senão um apanhado de carências e necessidades reunidas? Vaidades que sempre ganhavam outros nomes, os eufemismos narcísicos, como certa vez doutor Rudolph afirmara, uma obtusa inflamação do ego que levava nossa arrogância aos limites da sensatez. Lancei um último olhar para a moça antes de ser ensacada. Quis lhe dizer que aquilo não iria acontecer de novo, mas soaria falso dar garantias para alguém que nunca mais iria precisar delas.

“O assunto que tratava sobre a falta de sentido da minha vida já havia se esgotado, acreditava, há umas duas sessões atrás (sem resultado prático, como avaliei).”

Naquela noite não consegui dormir bem. O cadáver do dia me atiçava de modo estranho, como que ameaçando se juntar aos pesadelos que já me eram íntimos. Pensei nela. Por breve momento acreditei que ela estava ao meu lado na cama, mas estaria viva, apesar das lacerações. Não havia como afirmar que já estava afogado em outra tormenta, mas sei que passei a ouvir com atenção suas explicações sobre como morreu. Alegou não ter como pagar o aluguel e usou o corpo para não ser despejada até que se sentiu usada e depois de um basta vieram os tiros. Aquela sinceridade me seduziu e quis tê-la. Quis fazer amor com ela de uma forma que nem mesmo seu cobrador seria capaz. Certo que me condenariam, que eu me tornaria mais devedor ainda por permitir sequência tão pecaminosa, onde miasmas orgásticos me incriminariam de uma vez por todas. Eu sentiria culpa e ela se alastraria, como doutor Rudolph falara: “sonhos possuem conexão bem elaborada com aquilo que nos ataca no plano real”. No meu caso, noticiar eventos estúpidos se misturava à grande facilidade que eu tinha em lidar com pessoas que me eram por demais distantes… sem falar nas eternas gangorras financeiras, o ponto onde essas questões desaguavam. Acordei sobressaltado e vi que não poderia mais voltar a dormir, pois, se assim o fizesse, estaria realmente compactuando com o assassino daquela mulher.

Tentei ligar para o consultório do doutor Rudolph, mas eram 3 e 15 da manhã. A máquina me deu o agradecimento pelo contato e pediu retorno no horário comercial. Era questão agora de esperar, driblar um pouco o sono extorsivo, buscar na memória as melhores palavras de aconchego do meu psiquiatra, aquelas que, quando eu suava frio, vinham me dizendo que não havia um mês de agosto credor. Mas a minha rotina, admiti, era de um desnível sensorial imenso, e essa verdade me incomodava. Andar até o carro, ligá-lo, sentir o ambiente gostoso do ar condicionado e dirigir até a redação. Pegar as pautas e sair em busca de sangue, normalmente em ambientes que eram soturnos bem antes destes acolherem os mortos. No meio disso, usar os aplicativos para conhecer novas mulheres. Da última vez eu havia saído com a mulher de um gerente de banco, uma que me pareceu inteligente o suficiente para perceber que estava diante de um sujeito psicótico, lotado de insônia e com questões pendentes, mas que sabia se conter diante de alguns absurdos.

Falar com o doutor Rudolph sobre novos ou antigos problemas seria gastar dinheiro com caminhos cujas pontas se interconectavam e formavam um plano cíclico. Sentir a vida como diziam que ela era, evitar a vaidade como hábito venal e deixar as contas pagas, mesmo as do amor (as mais difíceis) era uma receita bem mais vantajosa que o Rivotril. Meu cotidiano jornalístico, contudo, onde perversidades eram retratadas todos os dias, me mostrava que quaisquer que fossem as atitudes, as ações pouco piedosas e moralmente repulsivas estariam sempre prontas a abrir seu repertório. Seria por causa disso que eu me via tão preso ao Doutor Rudolph e seu consultório livre de desacertos. Mas ele, certa vez, duvidou dessa minha certeza: “seu ofício acrescenta agonias, Gustavo, mas ele ainda é menos perigoso que seu ego. Este, sim, é seu maior agiota. É ele quem te cobra. E o faz através dos sonhos”.

“Logo eu estaria outra vez frente aos diálogos itinerantes, olhos movimentando-se rapidamente, fugitivos.”

Não consegui escapar, como o psiquiatra dissera. Os sonhos estavam lá, me aguardando sorrateiramente, recorrentes, com seus labirintos reformulados, como se meu consciente lutasse numa esfera na qual ele não possuísse instrumentos apropriados e, com isso, ficasse apenas mediando certa paz com monstros bem preparados. A mulher que conversava comigo no restaurante sombrio estava menos interessada ainda nos meus argumentos e, sendo sincero, parecia que estava até com ciúmes das novidades funestas, o que soava cômico, pois necrofilia jamais fizera parte do meu cardápio. O garçom, que se situava com elegância e sisudez em sua coação, desaparecera, deixando ao meu prazer o envenenamento com as vaidades, que brotavam por todos os cantos em passes de mágica. E estas, que transbordavam em quantidades pornográficas, caíam em meu colo, nas vestes, ganhavam vida, andando sobre minhas têmporas como lagartas excitadas, demonstrando nenhum compromisso com o sonho em que estavam, buscando apenas fortalecer um ego que dependia de amores turvos, amores que, assim como as sessões com doutor Rudolph, jamais me curavam.

“Senhor Gustavo… consta que nenhum mês está pago…”, “Assassinada brutalmente”, “O senhor deve…”, “Uma pessoa vaidosa e um final trágico”, “Infelizmente não há mais como cobrir esse rombo…”. Doutor Rudolph estava viajando e não poderia me atender, mesmo em caráter de urgência, como era a ocasião. Eva, a esposa e secretária do psiquiatra, vendo minha situação deplorável, tentou remediar, criar um conforto com palavras que, se antes já teriam um aproveitamento limitado, agora apenas nos constrangiam. “Senhor Gustavo, doutor Rudolph está num simpósio justamente para tratar desse assunto que acomete o senhor” e falou em descontrole, ações não razoáveis, loucura. Assim como o cadáver daquela moça morta por ciúmes, ouvir que minha condição servia como base para palestras, me transtornou. Rudolph não apenas não me tornara um homem saudável, não apenas me largara com esses fantasmas que reafirmavam um Gustavo arrogante e estelionatário, como também agora o doutor inebriava plateias com o meu sofrimento.

“A solução que doutor Rudolph poderia me trazer tinha de passar, necessariamente, pelas explicações daquelas aparições contumazes, que me julgavam e coagiam, mas não pelos meus objetivos reais (os verdadeiros sonhos) ou intenções amorosas que porventura eu demonstrasse.”

Irritado, liguei novamente para o consultório. “Doutor Rudolph não está, Gustavo, por favor, se acalme”. Não estava mais procurando doutor nenhum, queria era meu dinheiro de volta, pois nada acontecera e eu estava muito mal. Eva não entendeu bem, ou se entendeu, fingiu que havia um descompasso na minha intenção. Em dado momento eu percebi que ficar agindo como se fosse um cara equilibrado, um jornalista sério, só atrasaria meu diagnóstico, esse que, dessa vez, Eva, sem querer, deixou escapar. Um evento sobre loucura era onde ele estava. Fui usado e agora não havia mais motivos para tentar esconder meus anseios através de uma conduta cheia de reflexões. “O senhor não pode… não precisa vir aqui. Ele não está, está com especialistas, falando do caso do senhor, tentando te ajudar”. “E você, Eva, também está tentando me ajudar?”. Eu gostava da esposa do doutor Rudolph mais até do que dele. Nos instantes em que eu não estava cercado pelas figuras taciturnas, recordo que emergia uma espécime feminina determinada, bem diferente das insossas que povoavam minha mente instável. Liberta das formalidades, Eva se apresentava em sensações exclusivas, honestas e cúmplices. Acho que sempre amei a esposa do meu psiquiatra, desde a primeira vez em que estive no consultório do doutor Rudolph. “Senhor Gustavo, nunca tive um homem como o senhor…”, “Preciso pagá-lo, Eva…”, “Isso não importa mais”.

“Mulher de psiquiatra sobrevive após queda do oitavo andar”, “Descoberta a cura da esquizofrenia”, “Jornalista quita suas dívidas usando vaidades”. Tantas eram as manchetes possíveis para alguém que escapou de graves armadilhas na madrugada… alguém que se viu louco ao acordar, mas que foi chamado para fazer um arrombamento de mercadinho logo às 8. O sujeito levou trinta mil de um caixa eletrônico. Seria só mais um se não fosse o bilhete inusitado: “mulheres não gostam de homens pobres”. A autoridade riu, algumas pessoas concordaram usando tom sarcástico, e eu apenas anotei para a headline. Pode ser um homem viciado em mulheres, assim como de certa forma eu também era, ou vai ver não… apenas um jornalista vaidoso que buscava não parecer tão devedor assim, mas incapaz de raciocinar sobre o sentido de sua conduta. No fim, valia a mente tranquila e o sorriso de quem teve uma situação resolvida. Talvez ele não conseguisse dormir por causa do delito, mas o pesadelo da escassez passaria longe. Bastou apenas arrebentar um obstáculo com o pé-de-cabra, livrar uma mulher de seus carnês ameaçadores e obter um sexo intenso e inconsequente em seguida. Sem nenhum cheiro de morte.

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