Anton Stankowski

Sonhos

Léo Borges
Ensaios sobre a loucura
8 min readDec 20, 2016

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Naquele dia, doutor Rudolph me perguntou: “que tipo de problema ainda lhe aflige, Gustavo?” Os sonhos. Era esse o ponto. O assunto que tratava sobre a falta de sentido da minha vida já havia se esgotado, acreditava, há umas duas sessões atrás (sem resultado prático, como avaliei). Eram sonhos repetitivos que, embora não tivessem um terror explícito em seu roteiro, poderiam ser classificados por mim como pesadelos. Eles me incomodavam bastante e eu já deveria ter dito isso logo nos primeiros atendimentos, mas, na ocasião, optara por falar de algo mais supérfluo. Ele solicitou que abordasse os detalhes.

Eram duas partes que se misturavam.

Na primeira, sei que estava na mesa do que poderia ser um restaurante. À minha frente, uma mulher. Ela parecia casada, mas eu tinha certeza de que tínhamos um flerte. Não conseguia dizer como ela era exatamente, mas não parecia ser muito atraente. Porém, não era esse (a falta de beleza da mulher) o motivo para o sonho não ser bom. Imerso naquela fantasia, alguma parte de mim conseguia constatar que a figura feminina estava mais interessada em sexo do que saber sobre questões sociais. Talvez não fosse satisfatório com o marido oculto, mas isso não vinha ao caso. Como era eu quem estava ali, ocupando o lugar central (por assim dizer, o “dono” do sonho), interpretava a situação dessa maneira e assim a repassava ao experiente doutor Rudolph.

A questão primordial é que eu não interagia bem com essa mulher. Ela falava e eu também, mas ela abordava temas que não harmonizavam com os meus. E nisso chegava o garçom. Em todos os episódios era sempre o mesmo e quando ele chegava, o sonho, que já era por si de uma aflição incongruente, tomava um ar de real tormenta. Não olhava para o rosto dele, mas percebia o maxilar contraído realçado pela expressão antipaticamente muda. Ele enchia meu prato. “Com o quê?”, perguntou o doutor Rudolph. Bem, é complicado explicar, mas eu notava que ele enchia meu prato com vaidades. “Com vaidades? E como você sabe que eram vaidades?” Porque eram doces, mas ao mesmo tempo me causavam algum mal estar. E eu sei que a mulher diante de mim comentava sobre mudanças comportamentais que eu supostamente desenvolvia, que eu passava a distorcer, logo após as primeiras garfadas, o que ela estava falando. O que ela dizia ficava mais inteligível, é verdade, mas, por causa disso, também mais condenável. Ela buscava o meu eu perdido, um interior astuto e impetuoso, aparentemente ofuscado por inflamadas necessidades de bondade, e eu queria falar sobre determinadas guerras de ego, sobre pessoas famintas, animais usados em laboratórios, um papo estranho, e logo meu tom se camuflava, dando a entender que minha vontade de enveredar por essa linha não era propriamente uma comiseração sincera, mas um crer que, procedendo assim, eu reuniria mais chances de enfrentá-la.

Parecia, em verdade, que não me preocupava com os assuntos que eu mesmo levantava, que nunca havia me preocupado com isso. Que não havia motivos para me preocupar e que meus sonhos atestavam isso: uma indolente e falsa vocação para a generosidade. “E o senhor se preocupa?”, “Veja, doutor Rudolph, eu não posso ser a salvação do mundo, mas acho que ninguém pode, não é?”. O que aquele psiquiatra talvez não tenha entendido bem, e isso ficava claro, é que se eu possuía algum dom altruísta, esse só se manifestava nesses momentos do inconsciente e nunca no cotidiano. A solução que doutor Rudolph poderia me trazer tinha de passar, necessariamente, pelas explicações daquelas aparições contumazes, que me julgavam e coagiam, mas não pelos meus objetivos reais (os verdadeiros sonhos) ou intenções amorosas que porventura eu demonstrasse: voltaríamos, assim, às sessões anteriores, já pagas e analisadas. Mas, o doutor me afrontava citando Lacan, dizendo que não bastava passar da dimensão do fato para dimensão do que estava sendo dito sem que esse período fosse esmiuçado com profundidade.

Então, perguntou pela segunda parte.

Na segunda parte, que nada tinha a ver com a primeira (assim eu imaginava), eu estava chegando à minha faculdade. Cabe observar que eu já era formado há muito tempo. Jornalista. Chegava não na sala de aula. Chagava no setor de tesouraria. Entrava e escutava a atendente: “senhor Gustavo, o senhor se esqueceu de pagar agosto”. Eu não retrucava. Olhava para um lado, para o outro, sem nada enxergar. Como uma fita que é rebobinada, logo eu estava voltando para esse mesmo lugar. A atendente repetia a minha suposta dívida usando, acho, outras palavras “agosto não foi pago, senhor… assim, poderá haver problemas”, “Senhor Gustavo, o mês de agosto está precisando ser reparado”, “Há uma pendência relacionada ao mês de agosto, senhor Gustavo”, “Senhor Gustavo… agosto”, “Será que não sou um bom profissional, doutor Rudolph? E embora seja formado, uma precariedade acadêmica me faria voltar por meios indiretos como uma inadimplência personificada?”

Tive certeza de que eu teria mais uma noite na companhia daquela mulher estranha e dos questionamentos quase constrangedores da funcionária. O prato com as vaidades me seria servido pelo garçom antipático e sério e novamente eu me veria entrando pela sala refrigerada: “o senhor deve ter se esquecido, senhor Gustavo, mas é preciso lembrá-lo de que falta o pagamento de agosto”. Logo eu estaria outra vez frente aos diálogos itinerantes, olhos movimentando-se rapidamente, fugitivos. Minhas conversas com o vulto se iniciavam com algum lamento sobre a falta de sentido da vida, e, nas mais atuais, já misturando as sessões que eu tinha com o doutor Rudolph. A mulher balbuciava algumas imposições no cenário diáfano em que costumava estar, intransigente ao que aprecia, com seu ar insano e lascivo. A presença dela não oprimia tanto quanto a do garçom, porque ele sempre me trazia o que eu não havia pedido, as vaidades, mais e mais, e eu as consumia na frente dela.

Foi num dia frio, lembro, que eu estava no metrô e cochilei. Aqueles ruídos metálicos característicos dos vagões roçando os trilhos me adormeceram e logo me vi entrando na famigerada sala. “Senhor Gustavo, o senhor precisa pagar a mensalidade de agosto…”. Aquele pesadelo não me pegava de dia, mas agora vinha sempre, bastava um fechar de os olhos, quase um descanso de pálpebras, para que a mulher no restaurante viesse com um comentário em cima de outro, me acusando de alguma desfaçatez intelectual, cortando minhas articulações, insinuando egoísmo ou desequilíbrio de minha parte. E, tentando dissuadi-la de permanecer com as hostilidades, lá vinha eu trazendo assuntos relacionados à pobreza mental das pessoas, argumentos tolos, inócuos, até que o garçom viesse e despejasse as vaidades. Eram sempre muitas e bem feitas. E eu saboreava, acho que com algum prazer, não vou mentir. Ia contra meus planos iniciais, mas a fome era inerente ao andamento do sonho. Nem mesmo o psiquiatra sabia disso, da minha condição faminta, porque ele próprio já achava que eu era mesmo um vaidoso desvairado e que pagar as consultas caras era apenas um escape para as minhas esquizofrenias.

Naquele dia, doutor Rudolph falou pouco. Ouviu, ouviu e no final ponderou com “todas essas histórias podem não ter uma origem clara e nem um fundo único, mas trazem um aspecto que as une e que precisam de maior imersão para que se detecte o cerne problemático”. Ele já perguntara sobre a frequência dos meus sonhos. Eram sonhos habituais, estando feliz ou não. “O senhor sonha quando está infeliz?” Nessa eu vi que pretendia uma resposta direta, mas eu não sei se fui mentiroso, porque falei coisas das quais não tinha certeza. Tentei variar para atingir alguma verdade “ah, quando vou deitar me sinto feliz e sonho assim mesmo” ou “dormindo não sei se estou feliz ou não”, “ao comer penso nos sonhos e me noto menos feliz do que antes”, “ao fazer sexo acho que a felicidade esquece o sonhar”, “ao trabalhar, os pensamentos ressurgem”, “ao estar aqui estou mais feliz, e penso que devo isso ao senhor”.

Eu não sorria para as mulheres nos meus sonhos, o que pode não significar que eu estivesse infeliz naqueles momentos, mas preciso dizer que sorria para a atendente do meu psiquiatra. Como aquele era o único espaço em que eu me obrigava a ser mais gentil do que o normal, evitando assim a especulação de que estaria mesmo doente, tratava-a com caprichadas feições. Ela era também a esposa dele e em nada se assemelhava com a esmaecida atendente da minha faculdade que eternamente me cobrava um mês já há muito tempo pago. Décadas mais nova que doutor Rudolph, ela se mantinha tola e distante, enclausurada na apertada baia da recepção. A beleza dela era abstrata e muito diferente do ambiente denso que a cercava. Talvez isso tenha me fisgado, porque tudo o que eu estava compreendendo da vida naqueles minutos pagos a preço de ouro era que as subjetividades reinavam sobre mim.

Muito provavelmente eu não estava verdadeiramente satisfeito em momento nenhum, exceto dormindo, porque ali meu estado cognitivo revestia-se de uma certa independência. Mas soaria sempre como uma derrota ter de concordar com uma afirmativa tão cruel quanto esta. Era o que doutor Rudolph queria: atrelar meus sonhos e minha vida à suma infelicidade, uma conclusão rasteira, intuir que a repetição atordoante de figuras toscas no meu subconsciente derivava da ausência de sonhos na minha vida enquanto acordado. Meu argumento para refutar esse conceito era enfatizar que eu não dispunha de instrumentos para medir meu contentamento e que esse diagnóstico não passava de uma artimanha psiquiátrica pueril, tal como garantir que uma manhã viria chuvosa só pelos uivos das cigarras do dia anterior. Doutor Rudolph, contudo, tinha esse trunfo nas mãos: vira que a realidade dos meus sonhos era mesmo menos insossa que minha existência e confirmara que todos as personagens que geravam aquelas inquietações intrigantes convergiam para o que ele estava prestes a relatar: “Gustavo, esses fantasmas refletem sua capacidade de discernir, que é bastante rudimentar, além de ser vaidoso quando tenciona ser humilde e de trapacear regularmente num ofício nojento. Isso gera contas naturalmente impagáveis”.

Contas pagáveis era o que me restava. Eu procurava pagar pontualmente as consultas para não ter também o desprazer de estender esse desvario à realidade daquele tratamento psiquiátrico: “Senhor Gustavo, o doutor Rudolph não irá mais atendê-lo… o senhor está com três meses de atraso…” Tudo bem, “passarei a vir então só para flertar contigo, Eva”, fazer troça mental com a sua carência, que é por demais explícita. Por certo, algumas poucas palavras bastariam para que ela ficasse de quatro pra mim em cima desse balcão de mármore, na frente de seu sisudo marido, que perguntaria se estou feliz e se ela também está. “Sinto-me bem, doutor Rudolph! Os sonhos foram domados, as vaidades digeridas e as contas, agora, estão todas pagas.”

Pagar passou a ser melhor até do que expor ao psiquiatra os detalhes dos meus sonhos, melhor do que isentar minha vaidade jornalística das farsas que criava e melhor do que a vontade que em mim crescia de estuprar atendentes frias. Bastava pagar, tratar como se todos fossem prostitutas, incluindo o doutor Rudolph e as associações beneficentes. Contas pagas, donativos dados, pessoas ajudadas: a sensação de que a fome no mundo estava acabando pelas minhas mãos auxiliadoras e humildes precisava ser informada à tal mulher. Porém, eu ainda queria saber o momento em que iria reaver todos esses meus pagamentos sob a forma de benefícios. Também queria que o garçom me esquecesse, notasse que nada encomendara. Mas, lá vinha ele… o prato cheio.

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