THE BIRTH OF A MAN
7–12–19, boituva
A luz do sol incidindo no piso branco refletiu direto nos meus olhos e me cegou. Não me cegou de transformar a visão em pura escuridão, foi a meia cegueira de luz. Não conseguia ver a rua que eu estava subindo e deveria chegar até o fim, não conseguia ver um palmo a minha frente, não conseguia erguer a cabeça, só via os meus pés com nitidez e todo o resto era um espasmo de luz com as bordas indefinidas e infinitas em todas as direções. Precisava prosseguir, mas como? Como prosseguir sem ver o destino do próximo passo? Era feito estar sempre indo adiante no precipício. Tudo que restava era torcer pelo solo firme. Via os meus pés e mais nada, o momento seguinte era a luz absoluta da não visão. A luz era a esperança, pois se mover era acreditar. Não havia mais nada além disso. Havia o mundo todo, as pessoas que viam na direção contrária, mas eu não podia vê-los, eu não enxergava nada, então nada existia. Eu estava só. Eu e a luz do sol refletida no piso branco. Assim fui caminhando. Eu precisava subir a rua para chegar no seu final e o sol, posto na altura dos meus olhos, me cegando de frente como uma encarada brutal e me cegando em todos os ângulos agudos e retos ao tocar o chão, lembrava quem era quem. Quem era quem? Eu não sabia. O que o sol dizia eu não podia compreender por me faltar a linguagem dos raios solares. Eu, só um homem, e o sol sendo tudo. Nós não falamos a mesma língua e ele gritava para mim, gritava. Um grito é compreendido em qualquer idioma. Um grito de gente humana é o grito do mar e é o grito do cão e é o grito da planta e é o grito da mulher na rua escura com os movimentos das sombras. O grito não é um só. É um grito de raiva ou de medo ou de terror ou de susto ou de alegria ou de tesão. O grito é o grito calado das profundezas dos bichos de dez olhos e doze bocas o grito é um anjo descendo a terra com sua espada para lutar a última luta. O grito é universal. Mas o grito significa e o significado do grito do sol era inacessível para mim. Só me cegava. O grito do sol não entra pelos ouvidos. O grito não é só voz. O grito é uma expressão indefinível. Era preciso que eu caminhasse sob o grito do sol que me cegava. Precisava chegar ao fim daquela rua que eu subia olhando para baixo com os olhos meio fechados e lacrimejando. Os corpos que viam na direção contrária eram corpos de gente ou eram corpos de monstros, eu via só a silhueta e pedia perdão quando nos trombávamos, eu não podia ver, eu tentava desviar mas não conseguia, eu tentava seguir mas era detido pela multidão que dizia Olha por onde anda, garoto, e eu queria explicar que não era possível, mas eu não estava apenas cego, eu estava também mudo. Meus olhos lacrimejavam e quem olhasse, de costas para o sol, via a cena do homem chorando e caminhando. Chorando copiosamente. Chorando como se tivessem tirado dele a vida e ele continuasse vivo. A vida da razão de viver. Não era isso. Era o grito do sol, a cegueira, a força das luzes entrando violenta nos meus olhos. Eu chorava sem conseguir conter o choro. Meus olhos sempre foram frágeis. Eu vejo as coisas, vejo bem, vejo além das coisas, através das coisas, ainda que de olhos fechados. São frágeis feito um algodão doce que molhado desaparece. São frágeis feito os ossinhos da vovó. São frágeis feito o mundo em que vivemos e suas fronteiras rabiscadas com giz de cera. A realidade é um desenho de criança levado a sério pelos adultos. Meus olhos sempre foram frágeis, eu queria que fossem mais fortes, não aguentam a luz do sol. Choro por tudo. Culpa dos olhos. Frágeis. São mais frágeis que o resto do corpo. Meu coração é duro, os olhos não. Meu coração bate e diz Que se matem, mas meus olhos traem o sentimento e choram o choro do condenado. Meu coração bate e diz Que se acabe, mas meus olhos choram o choro dos infelizes. Meus olhos são bestas. Não aguentam a luz do sol. Eu ia subindo essa rua com o sol me castigando, chorando e olhando para baixo. Pedindo perdão a quem trombava seu corpo no meu. Não via o rosto de ninguém, tinha medo de ver. Eram só a luz e a silhueta. Tive medo de olhar firme de olhos semicerrados com a mão afastando a luz e ver no rosto de todos o meu próprio rosto. Esse é um pesadelo. O mundo todo é um espelho. Eu me vejo em todo lugar e eu me vejo como eu sou. Com meus olhos que veem além das coisas, através das coisas. Eu tinha medo de me ver além de mim, através de mim. Oxalá o que eu poderia ver. Oxalá o que seria de mim se visto pelos meus olhos. A vergonha, a vergonha. Meus olhos frágeis que choram o choro das rachaduras da terra. O que era preciso é prosseguir, subir a rua. Chegar no seu final. Ouvi alguém chamar meu nome, mas não sabia quem chamava. Conhecia a voz dentro de mim sem saber o rosto de quem possuía aquela voz. Senti medo, um enorme medo, uma apreensão pelo pior. Por não saber. Oxalá, oxalá não saber. Ouvia a voz me chamar e era alguém a minha frente, ali distante pouca coisa. Se estivesse atrás era só eu me virar e ver, iluminado pelo sol que agora me cegava. Esse sol que cega e ilumina. Deus estava bem-humorado quando pensou na paralaxe. Estava à frente, no mundo para o qual eu era um cego, não mais que um cego, um cego ainda dotado de visão, o pior tipo de cego. A voz me chamava e eu erguia a cabeça, procurando a boca que me gritava. Que gritava por cima do sol e me fazia ouvir. Só que erguer a cabeça fazia meus olhos queimarem com o sol que me encarava. Por que o livre arbítrio? Perder a visão nos olhos que queimam nas chamas ou não saber jamais quem é que te chama na multidão. Deus não estava bem-humorado quando inventou os dilemas. O que foi que eu te fiz? A voz me chamava e eu não conseguia encontrar ninguém. Não via nada. Só as silhuetas, só os movimentos, os vultos de quase gente. Meu choro de olhos frágeis agora era o choro da dor. Ninguém poderia notar a diferença, as lágrimas que corriam feito rios bravos pelo meu rosto. Tive medo, dor, desespero. Não conseguia mais andar. Por um instante não podia mais andar. Eu ouvia meu nome e não sabia quem me chamava. Eu ouvia esse nome que eu não sabia mais se era o meu. Naquele momento exato eu senti que não existia mais. Não que não existia. Que ainda não existia. Que estava por existir. A meia existência, do homem meio cego. Eu ainda viria a existir. O grito do mundo era o grito do oceano que cobria o meu corpo. Eu estava no centro da terra. Lá no núcleo. Onde as raízes terminam. Eu estava boiando, ligado pelo umbigo ao corpo da minha mãe. Eu estava ali, de olhos fechados, esperando o meu nascimento. Faltava pouco. Até que veio a luz. A luz forte do sol direto nos meus olhos frágeis e destreinados. Chamavam pelo meu nome que ainda não era meu. Passava a ser naquele instante. Assim que eu chegasse no fim da rua, eu teria o nome pelo qual chamavam. Eu tentava enxergar, mas eu não podia. A mão que cobria o meu rosto era uma mão pequena, os pés que eu via abaixo de mim eram pés minúsculos. Eu via tudo sem reconhecer nada. O mundo era desconhecido e perigoso e maravilhoso. Tudo era por significar. Meus olhos frágeis viam tudo na sua forma perfeita e original e a tudo eu daria o nome que eu quisesse e, assim, tudo seria meu. Nada seria meu, porque eu não queria possuir. Tudo seria comigo. Seriamos uma comunhão única. O grito do mar, da selva, do sol, da terra, o meu grito, um grito só, um grito de dor e de alegria. Um grito de quem ainda não nasceu. Um grito de quem está nascendo. Um grito de quem ainda não aprendeu a força do fim.