Imagem de Harut Movsisyan por Pixabay

Torrencial solidão

Aldo Damasceno
2 min readMar 9, 2020

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A chuva caía de forma feroz. Encharcava tudo o que se atrevia a enfrentá-la. O centro da cidade estava um caos. Os carros, os ônibus e o VLT espalhavam água e sujavam os pedestres incautos. Buracos tornaram-se pequenos lamaçais.

Mário pensou que aquele dia estava tão caótico que poderia ser o último, mas não achou que teria tanta sorte, enfim. Correu e atravessou a Avenida Presidente Vargas. Parou na calçada da pista seguinte.

Percebeu que ali estava um homem, sem-teto, tentando inutilmente escapar da tempestade usando um pedaço de papelão como guarda-chuva.

"A vida, talvez, não tenha sido tão ruim comigo", disse a si mesmo.

Logo esqueceu tal ideia quando quase foi atropelado por um carro que avançou o sinal da segunda pista em que ele atravessava.

"Filho duma puta!", xingou.

Acelerou o passou, contudo não conseguiu alcançar o coletivo que saia do ponto final.

"Puta merda", xingou de novo e bufou, "hoje não é meu dia."

Considerava, na verdade, que de todos os 35 anos que tinha, nem sequer um daqueles dias foi, de fato, dele. Achar que um dia em específico era um mal dia não passava de um recurso para se sentir menos miserável.

Aguardou no banco o próximo ônibus. O cansaço e o frio já o venciam.

Vislumbrou o próprio reflexo em uma poça d’água. Repentinamente, a imagem da ultima namorada lhe veio à cabeça. Lembrou-se dos rompimentos, dos amores e relacionamentos que ajudou a falir e dos grandes intervalos de solidão entre eles. Aquele momento exato era um pequeno frame de todo o filme. Acabava de se dar conta.

Estava tão perdido em reflexões que nem a correria, a confusão e o buzinaço da hora do rush o distraíram. Centenas de carros, sons e pessoas passavam por ele. Vidas, rolamentos, pneus, aros, sonhos, tristezas, desistências, amores, alegrias, tudo. Tão rápidos quanto as lembranças que roletavam em sua cabeça.

Não sentia saudade do passado especificamente. Sentia saudade de ver a si mesmo nas retinas dos outros. Não numa poça de água turva, suja, no meio de gente que jamais conheceria.

Sentia saudade mesmo é de não estar só.

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