Um bar na Arábia.

F.
Ensaios sobre a loucura
8 min readJun 22, 2022

Depois de quase uma hora o rapaz finalmente calou a boca por um instante. Nem lembro dos detalhes da história de merda que ele contou, mas sei que o barman aproveitou a deixa e foi pro fundo do bar buscar qualquer coisa. O jovem então notou minha presença. Me olhou de lado, calculando o que faria.

— E você, hômi, o que te aconteceu pra estar bebendo a essa hora, nesse lugar?

Num dia normal eu ignoraria, pagaria uma bebida, sairia de cantinho evitando qualquer possibilidade de desentendimento. Hoje não era um dia normal. Hoje completou um ano, hoje eu ia desabafar com alguém.

— Você quer mesmo saber, garoto? — Pressionei minha mão com força no ombro dele — Então senta aí, porque a história que eu vou te contar, você nunca ouviu igual.

Esbocei um sorriso e comecei.

— Eu ia me separar dela, sabe? — Tomei um gole de cachaça—Seis anos de casados e eu já não suportava mais. Ela não era maluca, não dava nenhum sinal de desequilibro, mas ela também não dava sinal de nada, parecia que eu vivia com um robô, me entende? — Bebi outro gole.

O garçom reapareceu e eu pedi um outro copo pro meu novo companheiro de bebedeira.

— Então ela descobriu, leu minhas mensagens, conversas com advogado, flertes com outras mulheres, e então decidiu se vingar.

O garçom trouxe um copo limpo e alcançou ao garoto.

— Essa é por conta da casa moleque.

Ele conhece minha história, e sabe que é uma daquelas que você prefere ouvir com algum álcool no sangue.

— No nosso filho ela deu um tiro bem aqui. Bem no meio. — Apontei bem pro centro da minha testa, vi seu rosto mudar para uma expressão de confusão e susto. Ele não esperava ouvir aquilo, ele só entrou naquele bar pra reclamar da namorada e ouvir alguma história boba sobre sobre alguém que perdeu a mulher para o amigo, para o sócio, para outra mulher. Ouvir sobre assassinato e vingança é uma boa lição pra ele. Nem sempre a gente recebe o que espera. Continuei.

— Depois de uns meses, aquilo passou a ser um consolo pra mim, sabe? Meu filho não soube de nada, apenas morreu. Com a minha garotinha foi diferente. Ela acordou, provavelmente assustada com o barulho e correu pro quarto da mamãe. Ela foi até lá buscando colo e só encontrou dor e sofrimento. A polícia não me deixou ver ela. Disseram que isso só me geraria trauma.

— Eu sinto muito — disse o jovem, o rosto inchado, vermelho, por trás da bebida, pude notar que ele realmente sentia muito. Não pude perceber se sentia muito por mim, pelo meus filhos ou por ele próprio por ter escolhido logo esse bar pra beber.

— Ela foi diagnosticada com transtorno de personalidade antissocial meses depois, descobri que ela já apresentava sinais desde criança. Quando o caso ganhou as notícias, vi entrevistas onde todos já sabiam que ela era diferente, que era só questão de tempo — tomei um gole na água que pedi junto com a cachaça. Sempre que eu bebo álcool fico com sede — Se todos eles sabiam, algum deles poderia ter me avisado, não acha?

Percebi que o estado de susto do garoto já passara e agora vinha a curiosidade. Uma mãe matou duas crianças por causa de um divórcio, é algo tão definitivo e drástico, que parece necessitar de uma explicação. Olhei para o bar continuei a história.

— Eu acompanhei todo o julgamento. Juntei toda energia que me restava, passei por testemunhos, por questionamentos, acusações da mídia, acusações do advogado de defesa, e sabe o que eu conclui? — olhei pra ele mais uma vez — Ela não se importava com nada daquilo. O resto da vida na cadeia, os espancamentos, as humilhações, ela não ligava pra nada. E naquele momento eu desandei de vez. Eu só queria vingança, qualquer tipo de justiça era inviável, meus filhos não voltariam, então eu tinha como consolo que ela sofreria, eu só queria ver ela sentir o que eu sentia. Mas isso era um desejo que eu não acreditava que poderia concretizar — Levantei do banco, me espreguicei — Vou mijar, a segunda parte da história fica pra depois.

Caminhei em direção ao banheiro e vi de relance o garoto chamar o garçom. “O que ele está contando é verdade”, perguntou. O garçom apenas fez que sim com a cabeça. Ele sabe que cada pedaço da história que eu contei e o que ainda irei contar são a mais pura verdade.

No meio da mijada eu tive minhas duvidas se o garoto tinha estômago para continuar a conversa. A maioria de vocês pode pensar que é fácil ouvir uma história assim, mas estar na presença de alguém que já experimentou uma dor imensurável não é tão simples quanto parece. Percebi logo depois da morte dos meus filhos que as pessoas normais se sentiam envergonhadas perto de mim, uma espécie de culpa do sobrevivente que toda sociedade sente. Afinal, a minha vida virou de cabeça pra baixo e a deles não.

No fim das contas, quando sai do banheiro, o garoto continuava lá, encarando o chão, me esperando pacientemente.

— Me joguei no álcool.— Disse a ele. De uma forma que nunca vi ninguém se jogar. Por semanas eu bebi como nenhum filho da puta já bebeu na história. Até que entre um bar e outro, ouvi falar de uma lenda antiga, contada por um imigrante de Trinidad e Tobago. A história falava sobre uma lâmpada mágica onde um mago poderoso foi aprisionado. Quem a encontrasse e permitisse que o mago saísse dela por alguns instantes, seria recompensado com três desejos.

O rosto do garoto relaxou e ele sorriu. Aquilo me enfureceu. Agarrei o pescoço dele e coloquei meu rosto a centímetros do dele.

— Ainda não, garoto! A hora de rir ainda não chegou, mas te acalma que ela já vai chegar. E nós podemos gargalhar juntos, eu e você — Soltei o ombro dele, deixei que se aprumasse enquanto eu tomava outro gole.

— A lâmpada ficava escondida em uma ilha caribenha esquecida por todos. Um local que não pertence a país algum, sem valor pra ninguém. Um depósito de lixo do oceano, que não atrai ninguém.

— Você não acreditou nisso né? — Perguntou o garoto com cautela.

— Se um dia que você estiver tão desesperado quanto eu estava, você vai entender que a gente se agarra em qualquer fiapo de fé que é jogado até nós.

Minha água acabou e sinalizei para o garçom me trazer outra.

— Vou te poupar dos detalhes da minha viagem, dos sofrimentos até chegar a ilha, dos tormentos até libertar o mago, tudo isso é periférico, o que importa de verdade é que eu possua três desejos e e sabia exatamente o que queria fazer com eles.

— Você pediu que ele trouxesse seus filhos de volta? — Eu não consegui captar se a pergunta era apenas por piedade de um jovem para com um velho louco, ou se a história o havia cativado tanto, que ele não estava pronto pra racionaliza-la ainda.

— Trazê-los de volta para quê? Trazê-los de volta para um mundo onde a mãe deles é uma homicida sem coração? Ou pior, usar um dos desejos para alterar todas as memórias verdadeiras que eles tem, até que só reste uma vida de ilusão? Uma fachada, uma maquiagem do que foi a existência real deles? Nunca. Eles estão em paz, no céu, como anjos, que permaneçam lá e que Deus perdoe a impureza e ódio do meu coração pra que um dia eu possa estar com eles novamente.

O jovem sentiu o peso do que eu disse.

— Meu primeiro pedido foi para que a cela dela fosse transportada para a ilha, trazendo somente ela junto. O mago, ainda se acostumando com a existência fora da lâmpada, fez apenas um breve aceno de mão e a cela pequena, de pedra, se materializou próxima a nós. Dentro dela estava Suzana. Minha esposa. Mãe e assassina dos meus filhos. Ela demorou a perceber nossa presença, mas por fim nossos olhos se cruzaram.

Minha garganta secou ao lembrar daquele momento, bebi a garrafa de água inteira. O garoto seguia estático.

— “Sentiu saudades, meu amor”? Foi isso que ela me disse. A mulher acabou de ser transportada para o meio do oceano, e a primeira coisa que ela faz é soltar uma frase provocante. Me diz se essa não é o tipo de mulher que um homem não consegue resistir.

Outro homem entrou no bar e sentou-se no outro lado, distante de nós. Eu fiquei feliz por isso, não gosto de alguém ouvindo a história pela metade.

— Meu segundo pedido para o mago foi para que ela vivesse o resto da vida dela sem nenhuma doença. Nada de câncer, AVC, ou infarto, que ela morresse só de causas naturais por causa da idade avançada. Ainda perguntei a ele se era possível também que ela não sentiria fome, ou sede, tudo no mesmo pedido. Ele concordou, e acenou com a mão. Dessa vez não houve nenhum sinal visível, mas eu sabia que ele cumprira meu desejo.

— Você planejou tortura-la? É isso? — perguntou o garoto, absorto na história.

— Calma, garoto. Estou chegando lá…. Depois do segundo pedido ela me disse estar feliz de saber que eu ainda me preocupava com o bem estar dela. Debochada ela. Eu costumava gostar daquilo.

Tomei um último copo de cachaça antes de terminar a história.

— Era meu último pedido. Perguntei ao mago como funcionaria e ele disse que após eu dizer meu último pedido, ele faria um aceno, concederia o pedido e então voltaria direto para dentro da lâmpada, que desaparecia por vinte anos. Então eu cheguei próximo a ele, de uma forma que ela não pudesse ouvir. Saboreei o momento, a vingança estava ali, algumas palavras de distância. Você já sentiu isso, garoto? A vitória chegando lentamente?

— Ah, acho que não — Respondeu ele confuso.

— Lembrei do dia que conversei com o psiquiatra dela. Ele disse que ela sofria de uma doença que impedia que sentisse emoções. Para ela era tudo racional. Isso era bom até a página dois, sabe? Ela não reagia impulsivamente, mas ao mesmo tempo ela não sabia também como reagir proporcionalmente. Por isso que ao saber do divórcio ela não me xingou, não me atacou, apenas foi lá e tirou tudo que eu amava. O médico disse que ela não sentiria remorso pelo que fez com as crianças, que aquilo provavelmente nem era uma memória importante pra ela. Percebe?

O jovem mais uma vez balançou a cabeça concordando.

— Eu lembrei das palavras do médico, de que ela não consegue responder proporcionalmente por que ela não sente as coisas como nós. E então pedi o mago por isso. Que ela sentisse. Sentisse exatamente da mesma forma que eu sinto. Da mesma forma que cada um de nós sente. Ela seria consertada mentalmente. Ganhara consciência, e isso permitir que ela sentisse remorso. Quando parei de falar, as coisas aconteceram como o mago havia dito. Ele foi puxado para dentro da lâmpada. Ficamos eu e Suzana naquela ilha deserta. Ela manteve o silêncio e o olhar de deboche por alguns segundos, mas então percebi algo mudar, seu olhar vazio que eu não enxergava durante o casamento, mas que cansei de ver durante o julgamento começou a se desmontar. O corpo dela começou a reagir. As lágrimas escorriam sem que ela ainda pudesse ao menos compreendê-las.

Encarei meu companheiro de bebida mais uma vez.

— Minha missão estava cumprida. Caminhei por alguns metros através de um trilha sinuosa buscando chegar ao barco que me trouxera até a ilha. Um pouco antes de alcança-lo pude ouvir. Minha vingança completa. Um grito de puro horror veio da direção onde estava a cela de Suzana. Ela finalmente entendeu o que havia feito. Eu me lembro de sorrir enquanto levava o barco para longe daquela ilha, para sempre.

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F.
Ensaios sobre a loucura

First you take a drink, then the drink takes a drink, then the drink takes you. — Fitzgerald.