Tudo o que ficou

Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura
2 min readMay 28, 2021
Fotografia: Amanda Francelino

Você esqueceu suas coisas aqui. Suas meias, seu nome, sua música, seu carro, seu dinheiro, seu silêncio no chuveiro, seu uniforme e mais de mil memórias impressas na minha pele. Um ponto roxo do seu beijo na parte de baixo da boca, o ponto roxo se multiplica em presenças pelos cômodos alugados. Vou pelo corredor tão cotidiana até que esbarro, tropeço e desabo com as mãos espalmadas no chão porque suas coisas estão todas aqui no meio dos livros que levei para a mesa naquela conversa, lembra?, sobre desenhos ou sobre fotografias que nos perturbavam e sobre as fotografias de nós dois que nunca tiramos. O tempo que deu foi pouco. Suas coisas caem espalhadas em cima dos móveis. Meu pulmão, meu desespero, meus fios cabelos, meus números de telefones essenciais que não importam mais, juntamente com as suas risadas e os meus farelos espalhados no mesmo sofá onde você comeu na panela usando minha roupa e a cena foi tão engraçada, e eu não queria nunca mais lavar a roupa e dancei muitas noites com a roupa e escrevi bêbada incontáveis vezes sobre a roupa e aí foi quando implorei que suas coisas fossem removidas daqui para haver, finalmente, um espaço vazio repleto das frases sábias das pessoas. O tempo passa. Quando o tempo passar, todos os amores se apagarão.

Os dias passam, mas percebe-se que o tempo tem raízes em forma de correnteza. É que os dedos do tempo são muito leves e eles nos arrastam minuto a minuto e nos arrastou para outros lugares irreconhecíveis sem que realmente pudéssemos perceber. O tempo passa inexplicável com bastante peso nos dedos leves. Eu espero o desaparecimento dos seus olhos, dos seus planos, dos seus sons e, principalmente, o desaparecimento dos sons do menino (com os fones de ouvido imensos, sentado na poltrona em frente a uma TV desligada). Você permanece espalhado pelo azulejo em tons de bege transfigurado pelas mais de mil memórias castas, em existências ou objetos melados que agora bagunçam o ambiente durante a noite e rolam escada abaixo. Perco o equilíbrio, novamente caio. Foi ensurdecedor, quebrou a pequena porta do armário. Você esqueceu suas coisas naquele dia quando você nem quis partir, mas eu te obriguei a partir. Você esqueceu meu corpo deitado no seu corpo afogado em desejo, afogado em falta. Venha me buscar, venha me buscar, venha me buscar, venha me buscar…

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Priscilla de Oliveira
Ensaios sobre a loucura

Crônicas e historinhas safadas para pessoas que não voltaram pra terapia hoje. Quem sabe amanhã? @prillas