Vulcãozinho escatológico
Psssst.
O ônibus parou com um assobio de ar agudo. Portas abertas. Ao subir o primeiro degrau notei o Doberman magrelo e bicudo atrás do volante. Ele mantinha os olhos fixos à frente, uma pata na direção e outra na manopla do câmbio e tratou de fechar imediatamente as portas atrás de mim. Engatou a marcha inicial, tão ágil como se a pata fina fosse parte integrante da máquina.
Um cheiro mole de coisa podre com pelo molhado prendeu-se no ar. Vou para a catraca. Os primeiros assentos, os preferenciais, estavam totalmente ocupados por de cães idosos, desdentados ou aleijados, como o Boxer de três patas que fez um esforço enorme para cheirar a minha bunda quando passei. Um vira-lata cego estava de pé — ou seja, de quatro — , preso a um cão guia, tentando fazer um contrapeso tardio às curvas do ônibus.
O cobrador, um Fila Brasileiro de pálpebras caídas, carregava no peito uma plaquinha de metal em formato de osso com o nome “Sabrino”. Raspou a superfície plana do caixa com as unhas curtas e arrastou para dentro da gaveta o dinheiro que coloquei ali. Também se mantinha profissionalmente imóvel, deve ser exigência da empresa. O único movimento era das ligas de baba que desciam das bochechas pendulando ao sabor do trote do ônibus.
Catraca liberada. Aqui predomina um fedor áspero e quente, mesmo com todas as janelas abertas. Os cachorros de grande porte encaixam as cabeças para fora da janela e impedem qualquer brisa de alívio. As janelas mais baixas tinham mosaicos de rastros úmidos de focinhos.
Por alguns minutos não saí do lugar. Uma cadela Pinscher está no cio e acumulou 13 cachorros de todos os tamanhos e idades, rosnadas e mordidas rápidas como botes de cobra eram parte da sedução. Avancei alguns passos depois que um Labrador carregou a cadelinha pelo couro da nuca até o fundo do ônibus, enquanto ela girava a coluna no ar e reclamava com latidos finos e prolongados, quase como gritos de criança.
Fim da viagem. Aqui o cheiro de bosta é quase o único, não fosse uma pomposa montanha de ração esponjosa vomitada há pouco sobre o assento a minha frente, e pisada bem no centro pelo próprio autor, um vira-lata malhado. Fico com os olhos entretidos pela cena, meio pendurado segurando nas barras de metal. Pensei: “parece um vulcãozinho. Esse é o meu registro, minha fotografia desta viagem, meu Punctum de Roland Barthes, minha…”, o cachorro interrompeu a abstração com medonhos ruídos estomacais. Movimentos de entra-e-sai com a barriga, arrotos borbulhantes por dentro. Com o susto despertei a tempo de apertar o botão de parada.
Psssst.
Portas abertas. Um cheiro neutro vem de fora e se destaca como uma gota fria que desce do chuveiro no meio do jato quente. Desembarquei junto com um casal que tentava se engalfinhar, de costas um para o outro, grudados após um coito malsucedido. Um branco e outro preto, raças indefinidas, Yin Yang. Um queria descer e o outro, tentando fincar as unhas nas ranhuras do piso de metal, queria seguir viagem. Ficamos ali os três. Cansados. Sorri ao lembrar do vulcãozinho.