A pele nossa de cada dia

Ninguém é verdadeiro o tempo todo

Eduardo T’Ògún
Entre Aspas
2 min readJul 4, 2017

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Ter uma ou mais personagens para encarar esse mundo cão é questão de sobrevivência e não tem nada de falsidade. Todos nós, em nosso interior, somos frágeis feito pele de bebê e existem pessoas especializadas em se aproveitar de nossa fragilidade. Por isso, um chefe abusado, por exemplo, sabe muito bem com quem ele pode gritar — e com quem é melhor não. A coisa fica mais feia quando, em nome da necessidade de sobreviver, criamos um personagem que se torna tão útil e necessário que acaba se confundindo com nosso eu verdadeiro, com nossa pele mais profunda. Usar essas máscaras é necessário. Tirá-las, essencial.

Ninguém, absolutamente ninguém é verdadeiro o tempo todo. Somos compostos por muitas verdades, uma mais contraditória que a outra. Não somos nem mesmo uma personalidade definida. Não somos Batman, Homem Aranha, Marilyn Monroe ou Madre Tereza de Calcutá. Somos uma mistura de várias coisas, sempre mudando, não há um “eu” essencial, mas sim um “eu” fluído, incapturável, em constante movimento e é nessa fluência que moram nossas verdades mais profundas.

E o uso dessas máscaras e dos personagens estende-se por várias áreas de nossas vidas. Muitas vezes, usamos para ser aceitos e anulamos nossa essência numa sociedade em que ser “normal” é curtir a vida loucamente com suas baladas, beijo e sexo fácil em quantidade, numa verdadeira escravidão pela busca de liberdade. Sim, a liberdade virou obrigação, assim como o uso da máscara que compõe essa busca frenética. Temos que mostrar que somos felizes o tempo todo, que arrasamos em qualquer lugar, que o corpo sarado sobrepõe a mente sadia e essa máscara vai tomando conta de nosso rosto, enraizando-se cada vez mais profundamente na nossa pele, tomando conta de tudo e transformando naquilo que não somos, tirando nossa humanidade. Aí, meu camarada, tirar essa máscara fica cada vez mais difícil.

Somos uma constante evolução, uma invenção, reinvenção e desinvenção. Vale a pena nunca esquecer que sempre podemos nos reinventar. A mágica está em dar novos significados às experiências e livrar-nos do que não é nosso.

Dias atrás encontrei um amigo que há muito não via. Era uma pessoa amável, humana, carinhosa. Fiquei estarrecido ao ver que ele virou um personagem, debochado, nem aí pra vida, de balada em balada e outras porcarias mais…Torço para que ele perceba que essa máscara que usa apenas para ser aceito pela maioria é uma versão bem pobre dele mesmo, e aproveitei para administrar melhor minhas próprias máscaras de sobrevivência. Pra mim, isso foi um alerta.

Usar algumas máscaras para sobreviver pode ser bastante útil, desde que não abusemos das mais confortáveis fazendo delas um rosto que agrada a todos, menos a nós mesmos.

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Eduardo T’Ògún
Entre Aspas

Iniciado no Candomblé há mais de 30 anos, estudioso do Culto Egungun, geminiano, inquieto e estabanado.