ANATOMIA DE UMA TRADIÇÃO

Karagan Griffith
Entre Cornos
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7 min readJul 18, 2023

Em primeiro lugar, quero esclarecer que não estou de modo algum a falar “em nome” da Wicca Tradicional no seu todo. De facto, ninguém pode. Mas irei talvez esclarecer alguns pontos comuns, baseados na minha experiência da wicca tradicional, que são sobejamente conhecidos, mas que talvez são mal interpretados pelo público pagão em geral.

A WICCA TRADICIONAL BASEIA-SE EM LINHAGEM INICIÁTICA

Na wicca tradicional, seja ela Gardneriana ou Alexandrina, baseia-se numa sucessão de iniciados (linhagem) que receberam uma iniciação (passaram por um rito iniciático) em cruzamento de género (homem inicia mulher e mulher inicia homem) que se pode traçar (ou verificar) até ao fundador(es) da tradição em questão. Por exemplo (estes nomes foram inventados por mim!), Alex Sanders iniciou Lorna Giles que iniciou João Monteiro, que iniciou Inês D’Avila, que iniciou Carlos Cabral, que iniciou Patricia Costa. Os ritos de iniciação tem de ser feitos segundo o formato tradicional a cada uma das tradições (Gardneriana ou Alexandrina.)

Existem diferenças entre os ritos de iniciação Gardnerianos e Alexandrinos. As diferenças são minimas, mas visíveis e suficientes para se distinguir as duas tradições como diferentes uma da outra no que diz respeito a iniciações.

A WICCA TRADICIONAL FUNCIONA EM GRUPOS (COVENS)

A Wicca Tradicional funciona em grupos (covens) de iniciados. A liturgia ritualística (rituais feitos) requerem, conforme o Livro das Sombras, a presença de uma Sumo Sacerdotisa e de um Sumo Sacerdote, para além dos demais membros. Apesar de isto ser factual em termos de liturgia, na prática, uma Sacerdotisa ou Sacerdote iniciado pode (na minha experiência) conduzir um ritual. Neste caso estes estão inseridos num coven de treino, e o facto de estarem a conduzir um ritual, faz parte do seu próprio treino, sempre acompanhado por um Sumo Sacerdote ou Sumo Sacerdotisa responsável pelo seu desenvolvimento e aprendizagem.

Os grupos variam de número, mas 7 é um bom número mínimo e o número máximo varia de necessidades e de coven para coven, embora seja dito que o número máximo é de 13 iniciados num coven de wicca tradicional.

Faz parte das leis, as quais obedecemos, que não se sabe exatamente onde um coven se encontra ou onde faz os seus rituais. Esta é uma lei/regra que seguimos à risca. Hoje em dia, sabe-se que coven tal se encontra em Lisboa ou no Porto, mas exatamente onde, nunca é revelado. Por isso, a cidade será o máximo de informação que se irá partilhar. Note-se que isto é uma modernice. A lei é bem específica e tradicionalmente, nem a cidade se identifica ou qualquer outra informação quanto ao local em que o grupo se reúne. Por isso, quando eu vejo pessoas indignadas a dizerem que não encontram covens na sua cidade, provavelmente existem, mas não se revelam.

Note-se também que um coven pode ser aberto (coven de treino) ou fechado. Se o coven esta fechado, ou seja, não aceita membros nesta altura, este normalmente “desaparece no nevoeiro” (expressão minha), ou seja, esconde-se. Nesta altura, o coven trabalha com os seus membros no aprofundamento dos seus rituais e desenvolvendo trabalho especifico.

Cada grupo ou coven é autónomo. Quero com isto dizer que cada grupo pode desenvolver o seu próprio trabalho dentro da tradição a qual pertence. Isto por vezes é mal-entendido pelos próprios iniciados com uma carta-branca, uma espécie de licença para se fazer tudo o que bem lhes aprouver. De certa forma, sim, mas é bom não esquecer que cada grupo tem origem numa tradição pré-estabelecida, e que existem procedimentos básicos ensinados para que se mantenha a integridade da prática e da tradição em si. Assim sendo, coisas como o traçado do círculo, consagrações e invocações são normalmente respeitadas. Se não o fossem, não se poderia dizer que o grupo estaria a praticar esta tradição específica. Não esquecer que “tradição” se define segundo o dicionário da Porto Editora como:

“ transmissão oral dos factos, lendas, dogmas, etc., de uma sociedade, de geração em geração.”

A BASE DA WICCA ECLÉTICA VEM DA WICCA TRADICIONAL

A wicca tradicional surge com Gerald Gardner (1884 -1964) em meados dos anos 40 em Inglaterra. Com a publicação de “Witchcraft Today” (Bruxaria Hoje) in 1954, e do “Meaning of Witchcraft” (O significado da Bruxaria) em 1959, a ideia de uma bruxaria moderna, advinda de práticas passadas de forma sucessória desde o seculo IX veio á luz. Gardner foi iniciado em 1939 no coven de New Forest, conheceu Aleister Crowley em 1946 e escreveu o livro “High Magic’s Aid” (Com o auxílio da Alta Magia, publicado pela Madras.) Com esta literatura e mais tarde com a publicação de livros como o “What Witches Do” (O que Fazem as Bruxas) de Stewart Farrar em 1971, o movimento da bruxaria moderna começou a tomar forma. Esta forma, baseada em livros e literatura publicada, começou a ser praticada como uma religião, que prima pela independência do indivíduo como praticante solitário. Livros como “Spiral Dance” (A Dança em Espiral) de Starhawk em 1979 trouxeram uma nova visão e abriram novos horizontes. Nesta altura, o movimento neopagão tomava forma via práticas vindas de vários professores como Victor Aderson, com a sua Feri Wicca, Zsuzsanna Budapest com a sua Bruxaria Dianica, entre outros.

A WICCA TRADICIONAL NÃO TEM AUTO-INICIAÇÃO

O conceito de auto-iniciação surge talvez pela primeira vez no livro de Doreen Valiente “Witchcraft for Tomorrow” (com primeira edição em 1978) numa secção do livro chamada “Liber Umbrarum.” Eu pessoalmente acho interessante e irônico que este conceito venha de uma das mais famosas Sumo Sacerdotisas de Gardner. Doreen foi a Sumo Sacerdotisa de Geral Gardner no coven de Bricket Wood de 1952 a 1957. Mais tarde envolve-se com as práticas de bruxaria tradicional em 1964 (não confundir com a wicca tradicional) de Robert Cochrane, chegando a fazer parte do seu grupo chamado Clan of Tubal Cain. Em 1978 publica o livro “Witchcraft for Tomorrow” onde esta determina e clarifica as suas crenças sobre bruxaria, inclusive o conceito de auto-iniciação e sequente formação de um coven.

Doreen faz esta afirmação em prol da auto-iniciação fazendo uma pergunta: “Quem iniciou a primeira bruxa?” A pergunta é interessante, mas talvez este fosse o ultimo ato de rebeldia contra Gardner e a sua Wicca iniciática. Doreen nesta altura estava muito mais inclusiva e acreditava que ninguém teria de ser necessariamente iniciado para ser um bruxo ou uma bruxa. De facto tinha razão, mas para se ser um bruxo ou bruxa Gardneriano(a) ou Alexandrino(a), tem de se passar pelos ritos de iniciação correspondentes. Ela própria acreditava nisso. Mas para se ser bruxo ou bruxa (sem ser Gardneriano ou Alexandrino) não. Eu pessoalmente acredito que se alguém que não foi iniciado na wicca tradicional e quiser ser incluído no nosso coven ou circulo, terá de ser iniciado primeiro. Não tem lógica que um auto-iniciado, que não passou pelos ritos de iniciação Alexandrinos, queira participar num círculo nosso. Os trabalhos são diferentes e uma iniciação faz com que o candidato tome contacto com a engregore (ou mente coletiva) da tradição que lhe dá acesso a conceitos energéticos e vibracionais específicos e característicos daquela prática, naquela tradição.

Por isso, na Wicca Tradicional, não existe auto-iniciação nem esta é reconhecida como válida relativamente à tradição em si. Por outras palavras, se alguém se diz auto-iniciado Alexandrino, esta pessoa não é reconhecida como um iniciado valido da tradição, precisamente porque esta prática não existe dentro da tradição.

NA WICCA TRADICIONAL TRABALHA-SE EM NUDEZ RITUAL

Um dos pontos mais controversos que alguma vez se discutiu na internet e não só, é que os covens tradicionais trabalham em nudez ritual. O problema disto é que, quem não sabe, soa a algo de cariz sexual. A explicação para esta ideia errada quanto a nudez ritual baseia-se no facto de que um indivíduo normalmente despe-se em duas ocasiões; ou para tomar banho ou para fazer sexo. Por causa desta experiencia vivida por quase todos nós, quando se fala em nudez ritual, existe a ligação imediata a sexo, porque se está a falar em ficar nu em frente de outrem. Esta é uma ideia que se compreende, mas que está errada. A nudez ritual nada tem a ver com sexo. De facto, a nudez ritual tem a ver com o se “ficar nu” literal e espiritualmente. Além de estabelecer uma igualdade entre os membros do coven, existe uma facilidade de produzir energia dançando nu. Este aspeto da wicca tradicional pode de facto afastar muita gente. Deve-se clarificar que na Tradição Alexandrina, o uso de túnica é permitido em alguns rituais, mas existem ocasiões em que a nudez ritual é obrigatória para respeitar o procedimento ritualístico da tradição, com é o caso das iniciações.

QUERER OU NÃO QUERER, EIS A QUESTÃO

Com tudo isto e a promessa de que o trabalho na wicca tradicional não é tarefa fácil, esta fica uma das últimas formas de wicca hoje que os buscadores preferem ou procuram. Como disse anteriormente, a wicca tradicional dá trabalho e requer comprometimento. Mas espera-se que este artigo tenha pelo menos clarificado alguns dos pontos-chave que estão presentes em ambas as tradições da wicca tradicional (Gardneriana e Alexandrina), que possa suscitar talvez mais questões e conversas pelos diversos grupos da internet.

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Karagan Griffith
Entre Cornos

Alexandrian Priest and Witch, blogger, publisher, film director and author. Host of “On the Blackchair” and “Hidden Light”