Compositoras e letristas do Brasil (1900–1950): Uma introdução

Damy Coelho
ENTRE LP
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4 min readMay 14, 2019
Nora Ney (Reprodução)

Queria começar essa série de maneira mais pragmática (sim, decidi agora, escrevendo essa linha, que isso vai virar uma série). Ou seja, com direito a um contexto, já que se dispor a fazer isso parece muito pretensioso. Então, explico:

A ideia é usar esse espaço para contar um pouco da história de algumas compositoras e letristas do Brasil da primeira metade do século XX.

São histórias de mulheres que venceram preconceitos e brilharam. Ou aquelas que foram vencidas por uma sociedade machista e, mesmo tendo de abandonar uma carreira promissora, deixaram um legado que precisa ser reverberado por aí.

LUGAR DE MULHER?

Você já pode imaginar o que era pra uma mulher fazer música nesse período, né. Nessa época, as poucas que se metiam nesse ambiente de música só podiam ser intérpretes e olhe lá (já que provavelmente abandonariam a carreira assim que o futuro marido mandasse). Na época em que a boemia era só pra homem, palco era coisa de vagabundo e as músicas ainda eram gravadas em um disco DE PLÁSTICO, você pode imaginar a dificuldade que era ouvir por aí um som feito por mulheres.

Pra isso, é claro, a gente entra no terreno espinhoso de reconhecer QUEM foram as mulheres que conseguiram se sobrassair num contexo musical nesse período: em sua maioria, são mulheres brancas, de famílias abastadas, que tiveram a oportunidade de fazer uma aula de piano ali (violão não, porque era vulgar), um treinamento de canto aqui, e que se agarraram ao resquício da oportunidade dada por uma vida sem precisar trabalhar, cuidar dos afazeres domésticos ou qualquer coisa que o valha para dedicarem seus tempos ociosos a estudar e fazer música.

Bom, se é trabalhoso resgatar o legado de compositoras nessa época, mais trabalhoso ainda é resgatar o legado daquelas que não se beneficiaram do prestígio de saírem de uma família rica - essa brecha que permitia à mulher ser pouco, mas tudo o que outras não poderiam ser. Esse prestígio ajudaria essas mulheres a poderem, pelo menos, divulgar e amplificar o alcance de suas músicas.

MUITO ANTES DE TOM OU CAUBY

Não dá pra voltar no tempo ou passar uma borracha nesses acontecimentos vergonhosos (infelizmente) mas dá pra fazer justiça a essas mulheres que foram apagadas, esquecidas e, até, silenciadas. Afinal, que outra coisa seria desestimular a mulher a seguir uma carreira musical, senão, silenciar?

A proposta é, a cada texto, resgatar ao menos 3 dessas mulheres: das marginalizadas por uma questão social, até aquelas já reconhecidas como patrimônio musical, e que foram influentes por usarem seus lugares de fala para darem voz a outras colegas de profissão.

A importância de exaltar essas mulheres é fazer justiça a elas, ainda que uma justiça tardia. Muitas morreram cedo, sem terem um reconhecimento pela obra feito ainda em vida. Uma lástima, se pensarmos na importância delas para a música popular brasileira como um todo.

Nora Ney, por exemplo, foi uma das primeiras artistas a gravarem uma composição de Tom Jobim. *. Ainda no início dos anos 1950, ela notou o talento daquele que seria o músico brasileiro mais famoso do mundo. E muita gente sequer ouviu falar o nome dela.

Nora Ney (1922–2003)

Outro exemplo é a pianista Carolina Menezes (1916–1999), que já botava todo mundo pra dançar nas boates com suas composições nos anos 1940. Além disso, ainda nos anos 50, ela foi responsável por transformar uma cantiga de bebê num verdadeiro rock around the clock. *

Explico:

se liga nesse rock meio charleston, meio brasilidades, meio cai-cai-balão dos anos 50!

Mas a Rock Around The Clock real, o primeiro hino roqueiro do mundo, sabe quem regravou primeiro no Brasil? Chuta?

Nora Ney.

Pois é. Em 1955, Nora foi a primeira artista a regravar um rock no Brasil, quando o estilo ainda nem era associado a uma juventude rebelde (o filme As Sementes da Violência só chegaria ao Brasil no ano seguinte, por exemplo). A cantora só foi reconhecida pelo feito já no fim da vida, quando foi “carinhosamente” apelidada de vovozinha do rock brasileiro.

Estou falando dos anos 1950, senhoras e senhores. Enquanto John Lennon ainda tentava tirar uma pestana na guitarra, Nora já via o potencial daquele novo som. E Carolina, então, já aloprava no piano nas boates por aí.

Aqui, um adendo: Na mesma época (mais precisamente, no movimentado 1957) Cauby Peixoto gravou a engomadinha Rock’n’Roll em Copacabana, que ficaria reconhecida na história da música brasileira como o primeiro rock feito no Brasil.

E Nora? E Carolina?

E Celly Campelo, que precisou abrir mão de uma carreira já consolidada quando se casou? Ou Hellena Meirelles, que precisou fugir de casa pra continuar tocando? Ou as inúmeras duplas femininas de música caipira que foram impedidas de seguir carreira muito antes de o feminejo pensar em existir?

Pois é por esses e outros motivos que precisamos, cada vez mais, dar espaço para essas e outras mulheres da música, de outrora e de agora. Se essa missão faz algum sentido por você, compartilhe esse texto e me conta também qual outra artista não pode faltar nessa lista. Garantimos que ainda há muita história a ser contada.

*Para esse texto, me ajudou (e muito) o ensaio escrito por Nisio Teixeira, O protagonismo feminino no início do rock brasileiro.

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Damy Coelho
ENTRE LP

Jornalista, Bacharel em Letras, pesquisadora em música sertaneja/feminejo. Ex Revista Ragga, Alto-Falante, Cifra Club e Palco MP3.