Descobrindo Agnès Varda e sua contribuição documental que ultrapassa linguagens, debates e eras
Mesmo que tardio, é um presente grandioso conhecer o trabalho de Agnès Varda. Seu cuidado de escuta e observação do outro complementa técnicas distintas do “Nouvelle Vague” (sendo o único nome feminino do movimento), nos ensinando a extrair aprendizados da memória vivenciada e transmitida com tanto afeto.
Inspiração para muitos, a cineasta tornou-se referência essencial para mim no processo de captação e nos minuciosos detalhes, seja como fotógrafa ou pela maestria escancarada com filmagens analógicas. Milhares já escreveram e pesquisaram sobre Varda, e ainda há milhares de pessoas por aí que vão conhecer sua necessária contribuição social, histórica e artística para com o mundo.
Enquanto Jean-Luc Godard e François Truffaut encabeçavam o movimento revolucionário cinematográfico francês, Agnès assistia tudo de perto e com olhares atentos, conduzindo seu trabalho na mesma genialidade. Se o nome da cineasta não desponta de forma tão imediata como desses homens, a responsabilidade está exclusivamente no olhar machista da história e do eventual espectador — e jamais na qualidade de seu cinema. Em sua abordagem da sétima arte, o entendimento é objetivo, preciso e emocionante.
O tom documental utilizado por Agnès traz um toque mágico para suas obras. É prazeroso ouvi-la narrando acontecimentos simples, cotidianos e que fazem parte de sua vida ou daquilo que ela acabou de descobrir. A voz serena e aveludada de Varda, nos transporta para lugares distintos de imersão profunda no roteiro e mensagem que transmite. Apesar de aparecer em cena, de narrar parte de suas histórias (isso acontece em vários de seus filmes) são as pessoas e os lugares que atravessavam seu caminho, a sua maior fonte de inspiração.
Sempre engajada politicamente, Varda retratava temas como o feminismo e críticas sociais. Tanto nos filmes de ficção quanto em documentários, a cineasta partia do que lhe afetava pessoalmente. Em seus trabalhos utilizava muitas locações ao invés de estúdios ou sets de filmagens e atores amadores, incomum para a época, dizia buscar a verdade por trás da câmera. “Nunca fiz filmes políticos, simplesmente me mantive ao lado dos trabalhadores e das mulheres”, comentava em suas palestras.
Nascida em Bruxelas, em 30 de maio de 1928, com o nome de Arlette Varda, seu pai procedia de uma família de refugiados gregos, e sua mãe era francesa. Estudou História da Arte na École du Louvre e começou a trabalhar como fotógrafa no Théâtre National Populaire (TNP) de Paris. Gostava da fotografia, mas estava mais interessada no cinema. E por isso, depois de filmar na localidade pesqueira de Sète por encomenda de um amigo, decidiu em 1954 realizar seu primeiro filme, La Pointe-Courte, que narrava a história de um casal triste e sua relação naquela cidadezinha. “Para filmar é preciso paciência”, dizia Varda, e sempre saía com a câmera na rua, “porque nada é banal se você filmar com empatia e amor”.
Casou-se duas vezes: a primeira com diretor de teatro Antoine Boursellier com quem teve uma filha em 1958, Rosalie Varda, diretora artística e produtora de Varda by Agnès. Em 1962 uniu-se a Jacques Demy, a quem acompanhou até sua morte, em 1990. Prestou-lhe várias homenagens fílmicas: em Jacquot de Nantes (1991) ilustrava a infância de Demy, e voltou ao seu universo em Les Demoiselles Ont Eu 25 Ans (1993) e L’Univers de Jacques Demy (1995). Desse matrimônio nasceu o ator Mathieu Demy.
Ganhadora do Oscar honorário no mesmo ano em que competiu ao Oscar de melhor documentário com Visages, Villages (2017), sua obra anterior, a realizadora belga dizia que a virada de século significava também sua virada de campo artístico: “Se vocês prestarem atenção, minha carreira se divide em duas partes, a do século XX e a do XXI. Na primeira sou mais cineasta; na segunda, artista plástica”. Para Varda, “os filmes não param o tempo, o acompanham”. No festival de San Sebastián, recebeu o primeiro prêmio Donostia dedicado a um não ator. Além disso, ganhou a Palma de Ouro Honorária de Cannes, em 2015, e o César Honorário do cinema francês, em 2001 (além de outros dois desses prêmios como documentarista).
Agnès Varda faleceu em 29 de março de 2019, aos 90 anos, em decorrência de um câncer, deixando a marca de seu talento para sempre impressa na história das artes e do cinema.
Para assistir
Uma cineasta prolífica e pioneira da “Nouvelle Vague”, Varda fez filmes por mais de 60 anos de carreira e nunca abandonou sua curiosidade contagiante e ímpeto analítico de chegar à verdade de uma imagem ou espaço. Através de sua vasta experiência — mais de 40 filmes e diversas instalações concebidas, relembramos aqui cinco entre tantos de seus trabalhos emblemáticos, que se tornaram verdadeiros testemunhos de sua inteligência característica e profunda empatia por seus temas. Voilà Varda!
CLÉO DAS 5 ÀS 7 (CLÉO DE 5 À 7) –1962
Cléo é uma cantora francesa que vive um momento de angústia, enquanto espera o resultado de um exame. O teste pode apontar se ela tem ou não um câncer de estômago. Sem saber o que fazer, Cléo perambula pela cidade de Paris. Ela passa uma hora e meia fazendo coisas banais, à procura de distração, até que conhece um soldado que está prestes a ir para a guerra na Argélia.
SAUDAÇÕES, CUBANOS! (SALUT LES CUBAINS) — 1964
Quatro anos após a Revolução Cubana, Agnès Varda visitou a ilha para registrar as mudanças no país. Lá, ela tirou 1800 fotos para depois transformá-las neste filme alegre e animado, um testemunho do impacto da revolução.
OS PANTERAS NEGRAS (BLACK PANTHERS) — 1968
Este filme foi gravado durante o verão de 1968 em Oakland, Califórnia, durante as reuniões organizadas pelo Partido dos Panteras Negras para libertar Huey Newton, um de seus líderes, e transformar seu julgamento em um debate político. Eles tentaram e conseguiram chamar a atenção dos Estados Unidos.
DAGUERREÓTIPOS (DAGUERRÉOTYPES) — 1976
Este documentário clássico de Agnès Varda é um retrato íntimo das pequenas lojas e lojistas da Rue Daguerre em Paris, uma rua pitoresca que foi o lar da cineasta por mais de 50 anos. Uma cápsula do tempo fundamental da vida de rua parisiense nos anos 1970 e da importância da comunidade.
OS CATADORES E EU (LES GLANEURS ET LA GLANEUSE) — 2000
A ruminação de Varda nesta arte de “viver do resto dos outros” encontra inspiração no passado e no presente, no rural e no urbano, na política e no altamente pessoal. Com câmera na mão, Varda entrevista aqueles para quem catar frutas é um modo de vida ou uma filosofia abrangente.