“Manhãs de setembro”, mais conhecida como série da Liniker, é uma reflexão sobre independência, afeto, sonhos e complexidade familiar

Daniele Gomez
ENTRE LP
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6 min readJul 14, 2021
Cassandra (Liniker) na série “Manhãs de setembro” (foto: AMAZON PRIME VIDEO/DIVULGAÇÃO)

A cantora, compositora & atriz Liniker, de 26 anos, é protagonista da série dramática Manhãs de setembro, produção da O2 Filmes, que estreou dia 25 de junho, no mês da diversidade. Vale a pena maratonar a primeira temporada, que ao todo tem pouco mais de 2 horas e 30 minutos de duração. Está disponível para assinantes do streaming da empresa Amazon Prime Video, em 140 países. A faixa etária indicativa oscila em cada episódio, mas mesmo assim é um bom programa para todas as idades. Vem comigo!

Manhãs de setembro conta a história de Cassandra, uma mulher trans preta de 30 anos que acaba de conquistar a tão sonhada independência. Ela vive um momento muito significativo, de finalmente “sair do sofá da amiga” (Clood Dias)e alugar uma quitinete só para si na cidade de São Paulo. Trabalha como entregadora e também como cantora cover de Vanusa, no Bar Metamorphosis, juntamente com a amiga Pedrita, interpretada pela artista Linn da Quebrada.

Em junho, a capa digital da revista Vogue Brasil foi estrelada pelas artistas Liniker e Linn da Quebrada. (Crédito: Mariana Maltoni).

Cassandra mantém um relacionamento apaixonado com Ivaldo, apelidado de Filezinho (Thomas Aquino), um homem nordestino, pai de uma adolescente lésbica, que trabalha como garçom e é… casado. Isto mesmo! Os dois vivem uma relação complexa, elaborada na série fora do paradigma de pessoas boas e más, e sim cheias de questões que entram em contradição. Até aqui está tudo sob controle.

Toda essa harmonia é abalada com a chegada inesperada de Gersinho (Gustavo Coelho), o filho que ela nunca soube que existia, concebido com uma mulher chama Leide, dez anos atrás. O enredo trabalha uma de suas temáticas centrais, a maternidade, por meio desse dilema familiar: uma mulher, em busca da liberdade, vê cair em seu colo um desconhecido filho que reivindica proteção e cuidados. O que pode acontecer a partir dessas urgências? Esta disputa de subjetividades, em bom pajubá, é um bafão!

No reencontro entre Cassandra e Leide (interpretada pela atriz, roteirista e diretora brasileira Karine Teles), descobrimos que ela e Gersinho vivem dentro de um carro, nas ruas frias e perigosas do centro de SP. Acompanhamos o choque de Cassandra e ouvimos uma voz feminina (Elisa Lucinda) conversar com ela, como se fosse um alter ego, ou uma amiga imaginária que diz: “Respira, Cassandra. Solta o ar. Relaxa! Lembra o que você prometeu para você mesma, quando estava tomando o seu primeiro café na rodoviária, assim que chegou em São Paulo? Que nada ia te tirar do seu caminho. Lembra?”

A situação comove a audiência, principalmente porque Cassandra decide negar a responsabilidade pelo filho. Com o andar da carruagem, entendemos que sua reação é baseada na crença de que a emancipação (construída com muita luta e resistência) será ameaçada pela maternagem. Que treta, minha gente! Algo me diz que é melhor eu fazer boca de siri, mudar o rumo da prosa, para não dar nenhum spoiler para vocês.

Cassandra (Liniker) e Gersinho (Gustavo Coelho) (foto: AMAZON PRIME VIDEO/DIVULGAÇÃO)

Bom, eu assisti a série de uma sentada só! Uma das razões para ter gostado tanto foi ver a Liniker entregando tudo em cena e por estar representando um papel que não se encontra facilmente na cinematografia brasileira: em Manhãs de setembro, ela é protagonista de uma história de idas e vindas no amor, tem uma rede de apoio sólida e várias ambições. Um papel que já deve ter sido encenado por pessoas cisgênero mais de um milhão de vezes, como todes nós já estamos cansades de saber. No dia da estreia, a cantora-atriz fez um post no Instagram que diz:

“Estou feliz por poder compartilhar a história de uma personagem tão intensa e necessária não só para as telas, mas também para tudo o que temos reivindicado hoje.

Agradeço imensamente a direção, a equipe técnica, a mesa de roteiro, obrigada por darem espaço para que essa história nascesse.

Acompanhada de um elenco generoso e muito apaixonante, convido a todes para assistirem e acompanharem a trajetória dessa história da vida.

Beijos meus, e venham conhecer Cassandra.”

Vou repetir algo que muitas análises da imprensa disseram sobre o tratamento da temática LGBTQIA+ e das representações de personagens dessas comunidades, que são excelentes, porque a série é diversa desde a concepção. O roteiro foi escrito por Alice Marcone (mulher trans), Josefina Trotta, Marcelo Montenegro, com a ideia original de Miguel de Almeida. Vou deixar o link aqui para vocês conhecerem uma análise que eu gostei muito, feita pelo youtuber Spartakus, sobre a temática da representatividade e outras coisitas mais.

Spartakus analisando Manhãs de setembro #publi

Enquanto pesquisava sobre a produção, descobri que Liniker soube do papel e o escolheu, sem que sequer fossem abertos testes para outras atrizes. Tá passada? Ela fez uma única leitura dramática com Luis Pinheiro, Dainara Toffoli (que assinam a direção) e uma produtora de casting, na qual cantou “What to do?”, a única canção de Vanusa que conhecia na ocasião. Pinheiro contou em entrevista do podcast Plano Geral que ela seria perfeita para desempenhar o papel principal e que ganhou a equipe pelas execuções sutis, olhares e pela sua doçura. Ela é tudo, mesmo.

Cassandra (Liniker) cantando a música de Vanusa “Manhãs de setembro” no bar Metamorphosis (foto: AMAZON PRIME VIDEO/DIVULGAÇÃO)

Preciso ressaltar também que as personagens não foram construídas de modo estereotipado e, por isso, a série consegue dar voz a realidades marginalizadas, ao mesmo tempo em que empodera. O dia-a-dia de travestis é narrado fora do contexto de prostituição, objetificação e violência física — na contramão da representação que é feita nos programas de TV, nas páginas de jornais, nos programas policiais sensacionalistas, na ficção que coloca em foco os atos afetivos/sexuais de maneira exagerada. Manhãs de setembro é um exemplo de como retratar questões de gênero e se posicionar contra a lgbtfobia de forma inteligente, ética e criativa.

Outro motivo para assistir a série é ouvir a Liniker cantando AO VIVO, já que a trilha sonora foi gravada live, ou seja, durante as cenas, e sem dúvidas isto dá um tchan na parada. Eu poderia dar tantas outras razões para vocês assistirem (o elenco é fortíssimo, o ator mirim Gustavo Coelho é muito fofo, etc.) mas escolhi falar de um recurso narrativo que é geralmente execrado no cinema, só que funciona bem na série.

Já ouviram falar em Voice Over? Não? Pois é, tem mais coisa nessa história.

Lembram-se que eu chamei a atenção de vocês para a voz feminina dentro da cabeça da Cassandra, no começo desse texto? A tal voz é de ninguém menos que Vanusa, uma cantora brasileira que iniciou carreira aos 16 anos e ficou conhecida no final da década de 1960, nos tempos da Jovem Guarda. A cantora é trazida a cena pelo uso da técnica de Voice Over — não como uma narradora onisciente, mas como uma amiga. É pela cumplicidade delas que conhecemos melhor a protagonista e recebemos informações essenciais para a conceituação da história.

Fica nítido para o público que a série homenageia Vanusa e a referencia de várias maneiras — seja quando resgata canções do disco mais celebrado da sua carreira, ou pelo uso constante de sua imagem no cenário: pôsteres, vinis e até uma foto autografada da cantora ao lado da mãe de Cassandra. Como vocês já devem ter notado, até mesmo o nome da série faz parte disso. A trilha sonora está disponível no Spotify.

E por falar nisso, a belíssima canção que dá nome a série integra o quarto disco da cantora, “Vanusa" , lançado em 1973. Existe uma suspeita de plágio envolvendo “Sabath Bloody Sabath”, da banda Black Sabbath e “What to do?”, faixa que embala uma das cenas iniciais do primeiro episódio. Vou contar mais uma curiosidade por trás das gravações de Manhãs de setembro, pois fofoca não só edifica, como também atiça a curiosidade.

Quarenta e uma diárias foram rodadas em Montevidéu, no Uruguai, e somente duas em São Paulo — escolha tomada para solucionar os problemas de segurança causados pela pandemia, que interrompeu as gravações durante três meses. Imagina o trabalho que a equipe de efeitos visuais teve para adaptar placas de trânsito e o formato dos postes? Imaginou? Muito bem.

A edição ficou impecável, e com ela, acabaram mostrando que estes grandes centros sul-americanos possuem semelhanças que vão além das arquitetônicas, e sim carregam marcas das opressões neoliberais, como a grande disparidade entre os gêneros, explosão do subemprego e informalidade, precarização das condições de vida, violação de direitos humanos e miséria.

Vai dar para entender melhor essa trama assistindo a série completa na Amazon. Então, se joga! Beijo!

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Daniele Gomez
ENTRE LP

Escritora, Bacharel em Letras, Multiartista, Feminista, Geração Perdida de Minas Gerais. Escrevo poesia no transporte público, quando entro em transe nas ruas.