Ninguém aguenta mais tanta Live

Anna Bella Bernardes
ENTRE LP
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4 min readAug 18, 2020

Qual o link da reunião? Vocês estão me vendo? O áudio tá bom? Hoje tem live de quem? Não perca a live. Perdeu? Ela tá salva no nosso IGTV. Vamos marcar uma call. A internet caiu aqui. Qual a primeira coisa que você quer fazer no pós normal? Temos que nos reinventar nesse novo normal. Seja flexível, seja resiliente. Fiz pão pela primeira vez e agora completei a lista de quarenteners. Skincare é sobre autocuidado e autocuidado é tudo. Pelo visto sou a única pessoa a respeitar o isolamento. Saudade disso e daquilo outro, né minha filha? Desculpe não ser produtiva, é minha primeira quarentena. Chega, a gente não aguenta mais.

O mundo virou uma grande live na pandemia. Segundo dados do YouTube obtidos pela EXAME em abril, as buscas por conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil na quarentena. Só no Dia das Mães tivemos 15 lives de grandes artistas. E teve artista que embolsou entre 1,5 a 2 milhões por apresentação! As empresas enxergaram rapidamente a oportunidade de impulsionar as transmissões ao vivo pela web. Enquanto isso, artistas fora do mainstream, com pouco ou nenhum apoio dessas empresas, encontraram nas lives uma forma de arrecadação de doações para a equipe técnica, já que não há nem previsão da volta dos shows. Iniciativas como #EmCasaComSesc, do Sesc São Paulo, vieram para potencializar o trabalho desses artistas menos midiáticos.

A pesquisa pelo termo “live” no Google Trends cresceu no início da quarentena e teve um pico em abril. Mas, apesar da oscilação, ela segue caindo.

Apesar de todo esse boom, em julho, as lives não chegaram a 25% do que eram em abril. A cura da COVID-19 ainda não foi encontrada, mas o retorno às atividades pode ser uma razão pela queda dos números. O uso de forma exagerada do formato em um curto espaço de tempo também acabou saturando. 95% de toda a produção digital no mundo em 2020 será jogada fora e a quarentena está abrindo as discussões sobre a longevidade do conteúdo e o excesso de informação. A infotoxicação e a FOMO são mencionadas há algum tempo, mas parece que nunca foram tão presentes.

Enquanto você faz a leitura desse texto, milhares de novas informações estão surgindo por aí. Isso é fato. Em uma época tão conectada quando a nossa é normal ter a sensação de estar perdendo muita coisa. FOMO ou ‘Fear of missing out’ é o medo de ficar de fora, e essa sensação atinge desde participantes de grandes festivais, quanto quem fica scrollando o feed do Instagram. A expressão foi cunhada em 2000 e não é nenhuma novidade que as redes sociais acabam potencializando as sensações de FOMO. FOGO, medo de sair de casa, FOPO, medo de postar nas redes sociais, e JOMO, aproveite o momento, também têm ganhado força nesses tempos de isolamento e auge da cultura do cancelamento.

Certamente as lives no Twitter estão rendendo diversos memes.

Ao passo que nunca se esperou (e cobrou) tanto responsabilidade emocional dos artistas nas redes sociais chegamos no boom das lives. Será que também estamos no auge da loucura ao estarmos 5 meses isolados em casa consumindo como entretenimento as lives de cantores bêbedos com conteúdo vazio? Além das lives de música, são aulas de funcional, de culinária, de montar um negócio, de francês… Às vezes acho que tudo isso está acontecendo para que a gente racionalize e pense em frear toda a carga dos últimos anos, sabe? Se o mundo parou e a natureza começou a reagir, imaginem o que deveria acontecer com o nosso corpo?! Está tudo bem não aguentar mais tanta live e não querer fazer quase nada.

O grande problema das redes sociais é que elas acabam romantizando a quarentena como se ela fosse um período de intensivão de conhecimento, entretenimento, mundo fitness e de várias outras coisas. Muitos artistas acabam gerando mais ansiedade na galera alegando que toda essa carga de conteúdo é entretenimento. Mas enquanto isso nós estamos: “eu preciso ver essa live, fazer esse curso, ler esse livro, aprender sobre aquilo, eu preciso consumir mais conteúdo”. Fato é que tem muita gente trabalhando mais que o normal durante a pandemia. Sem contar nos muitos que a quarentena nunca foi uma opção e nos outros tantos que ficaram desempregados ou seguem com medo de ficar. Além disso, precisamos cuidar da casa, dos filhos, dos bichos, das plantas e da nossa saúde física e mental.

O “pós-live” no “novo normal” será com shows VIPs no cercadinho? Há quem deteste gente encostando e dirá que ficará bem melhor para ver o palco. Mas esse show é para quem? Chegará no Brasil?

Recentemente eu estava vendo uma matéria que falava sobre a quantidade de conteúdo gerada em 2019 (em 1 ano) ser a mesma que aquela produzida entre 1996 e 2003 (7 anos!). Pensem só como está a cabeça de todo mundo querendo consumir tudo isso. Encerro por aqui esse texto, que passou de crítica do volume de lives para uma crítica à produção de conteúdo. Veja só: mais um conteúdo foi criado para alimentar esse monstro da infotoxicação. Mas não posso deixar de pedir para darem aplausos e compartilharem caso tenham gostado. Acredito que as discussões sobre produção de conteúdo e FOMO são cada vez mais urgentes e pretendo voltar nesse tema em breve. Caso tenha alguma dúvida deixe um comentário pra gente continuar esse papo. Até mais!

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Anna Bella Bernardes
ENTRE LP

Jornalista das Gerais perseguindo São Paulo. Comms leader do @museudapessoa e Co-founder da @entrelp. www.instagram.com/annagramizando