o jornalismo rodriguiano é uma utopia gostosa.

Damy Coelho
ENTRE LP
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6 min readOct 20, 2021

(parte I)

Você se lembra? Faz uns 10 anos que a ironia foi cancelada, mais ou menos na mesma época em que cancelaram o jornalismo — e eu não acho que sejam fenômenos isolados. Eu mesma matei a ironia dentro de mim porque era difícil carregar essa bandeira. Chega uma hora que justificar a ironia nas redes sociais com uma tarja de [contém ironia] se torna uma missão cansativa e meio burra; e pior, te coloca numa posição de arrogância. Até perceber que o problema não estava na ironia em si mas na incapacidadede de interpretação — que talvez também seja um problema com parte da crítica ao jornalismo. Como posso julgar, se vivemos na era da pós-verdade, que odeia a educação, a ciência e os fatos? É apenas triste.

Mas nem sempre foi assim: houve tempos em que a quantidade de jornais que circulavam era muito maior, incompatível inclusive com o número de pessoas alfabetizadas. Consequentemente, as redações de jornal foram ocupadas por escritores-aprendizes e altamente imaginativos: além da ironia, as capas de jornal estampavam histórias mirabolantes para entreter um pouco mais o leitor-classe-média da realidade fatigada. Nisso, nasceram algumas histórias para boi dormir: bebê diabo, chupacabra, chupacu e entre outros mitos. Na essência as histórias eram impactantes, mas tinham um problema: não eram reais (e ninguém avisou isso ao leitor). Ninguém gosta de ser corneado, afinal de contas. Um pacto precisaria ser construído, um aviso mínimo de que aquilo era folhetim, não era fato. Uma outra mídia amplamente acessível poderia ter surgido para abrigar essas mentes workaholics e inventivas, mas essa mídia, quando existiu, não saía muito dos corredores universitários. Até que um dia a bagunça foi organizada e passamos a apreder uma certa técnica para o fazer jornalístico minimamente responsável, e nela, infelizmente, reside pouco da imaginação e da ironia.

Claro que agradeço por termos evoluído em relação à checagem dos fatos, responsabilidade social, entre outros. O povo não é bobo. Mas no meio do caminho entre o jornalismo verdade e a afetação literária, parece que a capacidade imaginativa foi vencida pelo cansaço. Até mesmo no jornalismo opinativo a fórmula textual soa repetitiva. Como diria Glória Perez: “quando foi que perdemos a capacidade de voar?” means: quando a criatividade no ofício faleceu dando lugar a um texto apressado por erros de digitação, pelas metas diárias, pelo prazo cada vez mais apertado, e pior, pela incapacidade do jornalista atual de explicar a notícia ao seu leitor e não apenas transcrever um fato pela metade, que poderia muito bem caber nos caracteres de um tuíte?

Como jornalista, aprendi muito cedo que a ironia não é bem-vinda em ofício em detrimento da imparcialidade dos fatos. Isso pode ser óbvio para mim e para você, mas Nelson Rodrigues, jornalista e assumidamente irônico, com certeza leria isso, cuspiria seu café na máquina de escrever e pensaria: bando de idiotas.

A ironia preenche um espaço importante nas boas histórias, de Nelson Rodrigues a Machado de Assis ou Clarice Lispector. Já disse que eles também eram jornalistas? Irônico, não? (Com o perdão do trocadilho. )

Infelizmente eu conheci Nelson Rodrigues antes de conhecer o jornalismo. Infelizmente porque a máxima jornalística atual (que ele chamaria de “idiotas da objetividade”) não toleraria suas ironias, tampouco suas inventices criativas, seu instinto dramático e interpretações arriscadas de sentimentos alheios. E eu me encantei por toda essa fantasia mais do que pelo pragmatismo que o jornalismo aprendeu a exigir. A descritividade exagerada de Nelson era encantadora, mas definitivamente não era jornalismo; era um entremeio entre literatura policial fantástica e a crônica esportiva (com situações hiperbólicas e atacantes homéricos).Talvez isso — e liberdade criativa oferecida nos jornais diários naqueles tempos— tenha colaborado para a criação deste gênero híbrido que transita entre o fato, o dramático e o póetico, fazendo referência a pessoas reais mas amarradas com um tantinho de inverdades deliciosas elaboradas só por quem é capaz de enxergar o cotidiano com uma lente de aumento.

Confesso, meu sonho era escrever assim, como Nelson Rodigues. À maneira rodriguiana, como diriam na faculdade de letras, seja lá o que isso signifique. Um misto de ironia, escracho, autossabotagem, devaneios e sem-vergonhice, tudo isso transparecendo na escrita, na escolha meticulosa das palavras, no tom dramático (no melhor sentido da palavra; teatral, ~sheaksperiano~).

O brasileiro foi acostumado a gostar de boas histórias, por isso Nelson Rodrigues foi herói (ainda bem). Antes das novelas e do cinema, as verdadeiras boas histórias vinham, quem diria, dos folhetins, dos repentes, das modas de viola, e por aí vai. O jornalismo herdou um pouco essa missão: consequentemente, o jornalista-autor se saculejava para conseguir extrair uma boa história de uma pauta insonsa e atrair o leitor sedento por um drama maior que a sua própria vida, ou minimamente uma fofoca. Como diria o próprio Nelson Rodrigues, “a televisão matou a janela”.

Se o jornalista não conseguia atrair o leitor pelo texto completo (há de se ter tempo para ler), apelava para um título chamativo, um aumento mas não invento. Hoje, isso seria chamado de “clickbait”: O Brasil contemporâneo conseguiu empobrecer até a manchete de jornal. Vale lembrar que a profissão EDITOR, que muitas vezes escolhia esses títulos, acabou virando patrimônio de redação, cada vez mais esquecida nas chamadas ~ agências de conteúdo. O jornalista, desamparado, virou editor revisor fotógrafo analista de sistemas e ainda apela para a imaginação (quando não pro bolso) para se destacar no mar de notícias do Google. Nesse acúmulo de funções e SEOs, onde fica a criatividade?

Numa soberba ou ataque de velhice, me sinta reconhecida nesse lugar híbrido entre o real e o exagero irônico, entre o cotidiano e o fake. Falar de fatos é uma responsabilidade social e ética importante; por isso não me sinto incumbida a selar o compromisso apenas com a escrita jornalística quando de fato o que me comove é o ritmo, o tom, a história contada de forma mais bonita, ainda que um termo ou outro seja inventado, ainda que uma memória seja fantasiada, ainda que minta sobre uma irmã mais nova que nunca existiu, como eu fiz na terceira série depois de uma amiga não entender uma brincadeira que eu fiz. Imaginativa, mitomaníaca ou só mais uma vagabunda irônica?

A verdade é que os mares nunca foram calmos para quem sonhou em escrever para pagar as contas. Hoje ter a escrita ou “produção de conteúdo“’” como ganha-pão é o desejo de muitos. Mas condicionar a escrita ao ofício exclusivo da remuneração é uma morte à criatividade genuína, porque ela é usada em benefício maior de outro — que não é um leitor, mas um cliente, cuja inspiração não é um personagem, mas um produto que precisa ser vendido. Sem falar dos jornalistas que cobrem política. Imagina se debruçar sobre a vida de um personagem como o presidente da república sem poder usar nem um cadinho de ironia ou deboche? Meus mais sinceros sentimentos.

Será que o Brasil de 2021 matou nossa liberdade criativa, o autodeboche a ironia? Será que vamos ser reféns das fake news como instrumento político quando essa inventividade mirabolante poderia ser colocada em outro lugar (afinal, também existe ficção ruim)? Será que a alta taxação de livros nunca vai ter fim, e nossa educação será sempre sucateada? Será que vamos sempre precisar ser pragmáticos para sermos compreendidos? Será que o jornalismo vai morrer assim como a ironia? Até quando seremos governados por idiotas?Como Nelson Rodrigues falaria de Jair Bolsonaro nas páginas de jornais? Infelizmente ele não está mais aqui, mas nos deixou uma terrível premonição: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”.

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Damy Coelho
ENTRE LP

Jornalista, Bacharel em Letras, pesquisadora em música sertaneja/feminejo. Ex Revista Ragga, Alto-Falante, Cifra Club e Palco MP3.