“O Underground é para perdedores” — Pt. I

Uma semana na estrada com a Miêta, Festival Bananada, três estados e oito ressacas musicais. Aqui, o balanço da conta final.

bruna vilela
ENTRE LP
9 min readJun 5, 2017

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“Aquela foi uma viagem longa e estranha”, Tony Parsons — o mesmo que proferiu a frase título desse texto — concluiu sobre os anos em que trabalhou como jornalista cultural, e que começaram com uma longa cobertura da corrida de ouro do punk rock para o NME.

Talvez essa frase pudesse resumir minha última turnê de uma semana com a Miêta, com a palavra “estranha” assumindo as mais diversas e vigorosas conotações. Ou, talvez, eu só queira me identificar com alguém que passou boa parte da vida como jornalista ao lado da música, registrando-a. No entanto, aqui entra o meu privilégio de estar não ao lado, mas dentro da música, e de ser uma jornalista que entende, por vivência, das temáticas de que trata. Com isso, vem o gozo da catarse em palco, juntamente à urgência do registro minimamente racional (e ainda altamente subjetivo) sobre ele e sobre todo o resto. E esse resto é vasto, acreditem.

[Repitamos o mantra, pois, durante todo o relato: tudo será creditado pela ótica subjetiva.]

Aperto dos mais desconfortáveis no peito, falta de ar e um tremor ritmado marcando os espasmos do meu corpo. Era a segunda crise de ansiedade que eu tinha na semana antes de zarparmos pra Goiânia. “A gente trabalha 48 horas por dia”, disse o Fernando Bones pra mim um dia desses na porta d’A Obra Bar Dançante, em BH. Sim, a gente trabalha isso mesmo. E eu estava no grau máximo da loucura induzida por cafeína e estresse na sexta-feira anterior à viagem.

Enquanto acompanhava a finalização de uma matéria sobre os 50 anos do disco The Velvet Underground & Nico na redação do programa televisivo onde trabalho — e tentava lidar com todas as demandas do cotidiano “normal” -, olhei para a icônica banana da capa do álbum desenhado por Warhol, no computador da ilha de edição, e respirei profeticamente tentando botar ansiolítico imaginário no pulmão: “Calma, vai rolar. Essa banana vira bananada na segunda-feira.” (Luiz provavelmente adoraria me ouvir ditando, desesperadamente, esse trocadilho tiozístico em voz alta).

No entanto, obviamente, em meio à cascata de tombos, rolou. Na segunda, mesmo com um cansaço físico já acumulado do estresse de BH, o cansaço mental começou a ser dissipado a partir do toque da campainha do meu apartamento. Marcela subiu para me ajudar a carregar as coisas pro carro.

Uma parada na casa do nosso príncipe, Matheus Prado (amigo dos jornalismos da vida que topou entrar na caravana pra fazer uma cobertura audiovisual desse rolê todo pra gente), uma cachaça com limões debaixo do banco e um porta-malas lotado com equipamento de todas as sortes e malas e cobertas. Depois de um bom atraso para pegarmos de vez a estrada, era umas 15h da tarde de segunda quando eu derrubei uma cerveja choca na porta do carro do Luiz e acendi o primeiro cigarro da semana que poderia ser fumado com calma.

O trânsito de BH foi ficando pra trás e o meu olho começou a pesar, enquanto a gente terminava de comentar sobre o quanto foi maravilhoso e catártico ver My Magical Glowing Lens tocar no Matriz no sábado anterior (Festival Goiabada — que contou com El Toro Fuerte e Miêta também -, um esquenta pro Bananada).

El Toro Fuerte na Matriz Casa Cultural - Festival Goiabada.
My Magical Glowing Lens na Matriz Casa Cultural - Festival Goiabada.

Nós iríamos rodar até Uberlândia para quebrar a viagem e dormir com calma antes de chegar de vez em Goiânia. Das estradas mais bonitas que existem, o cerrado que escorre plano pelas janelas do carro só apareceu pra mim no escuro dessa vez — quando eu acordei permanentemente pra terminar a viagem um pouco mais enérgica. No caminho, Luiz contou que o carro do My Magical tinha quebrado e que eles estavam no maior corre para conseguir chegar em Uberlândia.

É nessas horas que a gente agradece a Jesus Shoegaze por estar tudo bem com a gente e lembra o quanto uma turnê precisa de uma raça fodida para seguir bonita. Mas acontece que as quatro pessoas do My Magical possuem as duas coisas: a raça fodida e Jesus Shoegaze abençoando-os.

FAIXA 1: O Dão Da Canelinha

A gente tem um carinho por Uberlândia imenso. Desde quando nós quatro nos juntamos, Lava Divers já era unânime como uma das bandas que a gente mais gostava. E nesse último e segundo semestre de Miêta, já teve show deles em BH com a gente, show nosso no Dão (não sei o porquê desse apelido pra cidade até hoje, inclusive), turnê juntos, canelinhas incansáveis ingeridas e algumas boas naves batidas e helicópteros pousados. Enfim, é aquela banda que poderia facilmente casar com a Miêta. E uma banda que também iria pro Bananada.

Além deles, Dão tem outras bandas que a gente admira demais, um público que já foi muito carinhoso com a gente, amigos que nos abrigaram e a Casa Verde, cujos moradores fazem um corre igualmente maravilhoso, recepção afetuosa de bandas que colam lá e muitos dogs e gatinhos acompanhando o rolê.

Pois então, estávamos entrando na cidade depois das 7 horas passadas dentro do carro e Marcela avisa que era para irmos direto pra Casa Verde, porque ‘todo mundo’ estava lá. Ao que eu já respondi com uma mistura de animação, preocupação, autocontrole transferido pros colegas de banda e alívio de ter chegado: “Gals, mas pelo amor de deus, não vamo queimar a largada hoje, por favor. A gente não pode”. No final das contas, eu estava falando isso muito mais pra mim mesma. E Luiz já previu isso: “Ah, então cê não vai tomar uma canelinha chegando lá?”

“Ah, uma canelinha eu tenho que tomar porque acabamo de chegar em Uberlândia né”

E assim seguiu o baile. Chegamos na Casa Verde e, realmente, estava todo mundo lá. Dão virou oficialmente o pit-stop para Goiânia banhado à canelinha. Encontramos JP Cardoso, Lava Divers, Papisa e…:

Gabi e Paoli, do My Magical.

Eu falei que Jesus Shoegaze estava com eles.

Um violão que foi de Green Day, passando por Morphine a Pixies (isso só do que eu presenciei) embalou o cansaço e a expectativa de todo mundo. E, logo depois, fomos dormir na casa do Marco, que sempre nos recebe bem demais quando estamos lá. No dia seguinte, eu acordei passando mal demais, com uma cólica que revira meu corpo todo e que só passou depois que eu comecei a tocar no estúdio de lá e tomei um chá de gengibre da Ana (Casa Verde e Moviola-Mídia Livre) — obrigada, miga. Gravamos uma session e saímos correndo para Goiânia, já atrasados e sem cólica.

Foto do Príncipe (Matheus Prado).

FAIXA 2: O Futuro É Feminino — E Poderoso

¾ do My Magical já estavam em Goiânia, de carona com a Rita (Papisa). Paoli, o raçudão da porra, ainda estava para chegar de ônibus, levando a maior parte dos instrumentos.

A gente chegou atrasado, mas, talvez, nem tanto assim. Depois de descarregarmos o carro, avistei Hannah e Letícia (PWR Records) no saguão do hotel, também conhecidas como: mulherões da porra em busca da dominação mundial.

A noite era, verdadeiramente, das minas. Nosso show seria junto da Lari Pádua e da Papisa no Shiva Alt-bar — todas nós lá por conta da PWR Records, nosso selo. A PWR é feita no suor das duas mulheres que falei acima e surgiu no ano passado com o intuito de lançar bandas de/com mulheres em sua formação. E eu acho que não preciso falar mais nada a respeito disso, porque todo mundo já deve visualizar a importância e a grandeza desse trabalho.

Os shows começaram com atraso, mas tudo ficou mais confortável quando eu entrei correndo com a minha cerveja no espaço interno do Shiva (eu também estava atrasada) e vi o boné cor-de-rosa da Lari Pádua, entre as cabeças do público que se colocava atenciosamente de pé no espaço decorado em frente ao palco. Mesmo conseguindo ver só um pedaço do show, frente aos samples, Lari mostrou a independência de abrir a noite da PWR com enunciados suaves do trip-hop tímido que, ainda que solitário, alcançou a atmosfera necessária de experimentação subjetiva.

Foto por Bruno dos Anjos.

Intervalo. Eu saio pra fumar o velho cigarro pré-show. Marcela e Célia estão terminando de dar uma entrevista pra Daniele, do We Are Not With The Band, enquanto a Filipa explica pra mim o seu itinerário da noite. “Já tá na hora de vocês começarem né, guria? Preciso ir correndo pro Complexo depois daqui, pegar o show do My Magical.”

Sim, já estava na hora da gente começar. Mas, antes: uma palavra aqui sobre o projeto WE ARE NOT WITH THE BAND. Outras duas mulheres (três, com a Clara, que eu ainda não conheço) que podem dominar o mundo — abraçando-o e registrando-o.

Quando conheci essa máxima altamente representativa no título da página do Facebook, eu estava certa nas apostas empolgadas. Criar um meio comunicacional multimídia a fim de desmistificar a ideia da mulher sempre companheira da banda e nunca integrante dela — por meio de entrevistas, vídeos e fotos — é parte essencial e absurdamente louvável na cena musical independente. E é isso o que elas fazem com uma competência invejável.

“Vamo entrando, gals?”

Luiz convocou. E nós entramos na pressa tensa de arrumar os equipamentos. Eu não imaginava que o Shiva estaria com tantos rostos atentos voltados pra gente, mas tive o conforto de olhar pro espaço ao redor. Não tive tempo.

“Todo mundo ok? Bora?”.

Três velhas batidinhas na baqueta e o show correu rápido. Preciso. Formatado. Quadrado. Tenso. Preenchido, sem muito respiro. Ainda na primeira música, olhei Marcela com a cabeça séria voltada pro baixo. Joguei o corpo pro lado dela na segunda. Ri. Na quarta, o samba shoegaze da bateria do Luiz em “Dive” encontrou o gingado bobo que me faz sorrir de orelha à orelha, mesmo com os músculos gerais um tanto rígidos. O baile conseguiu terminar em balanço.

Divulgação Bananada.

“Pet”, nosso último single, trouxe para perto a dança quente e atenta de quem eu acho que precisaria estar lá realmente. Saldo final: positivo e satisfatório.

Foto: Fernanda Eleonor.

Depois de empurrar os instrumentos pro lado do palco e reabastecer a cerveja, consegui encontrar um cantinho entre uma parede e outra pra ver de perto as bruxarias da Papisa. Voz em cima de voz, timbres precisos e uma atmosfera contundente na sua fluidez harmônica. As letras ganham mais sentido a cada sample solto, a cada pisada no pedal que a Rita dá. Ela — interna, íntima. Mas o som permanece expansivo, mesmo que, igualmente à Lari, individual.

Era a minha primeira vez (de algumas boas que viriam ainda) vendo esse show. E eu saí do canto das paredes apertadas perto do banheiro com o pulmão vasto e aquele sorriso de canto de boca pautando satisfação.

Depois disso, só uma frustração pela noite não ter tempo de terminar com a Jam das Minas — algo válido para pincelar depois.

Foto por Bruno dos Anjos.

Então, finalizamos com o vento frio da laje do Complexo, outro bar da cidade que suportava o Bananada nas Casas. Depois de uma parada rápida no hotel, o show do My Magical já tinha acabado quando chegamos lá. Quase que eu e Marcela fomos barradas pelo porteiro que insistia em avisar que a cerveja já estava acabando. No entanto, jeitinho mineiro supera o brasileiro geral e, portanto, conseguimos tomar mais duas cervejas percorrendo a cortina de cigarro nos ambientes do lugar. Todo mundo estava lá de novo.

Perdemos o show, mas Filipa chegou a tempo para registrar as bruxarias pedalísticas da Gabi no show do My Magical.

Acabamos sentadas num banquinho de madeira perto de várias rodas de pessoas, conversando apenas entre a gente sobre nossa própria banda. Sobre amor por música. E amor por estar bem.

“Vamo pro hotel dormir?”

Abandonamos os fortes e entramos numa corrida disparada da porta do bar até o hotel (duas quadras), depois de olhar pra trás e ver um homem rápido andando em direção a nós. Nada de novo sob o sol feminino.

Passamos a porta de vidro, recuperamos o pulmão já no elevador. E colocamos os alvéolos pra descansar, já seguras no quarto, enquanto Célia abraçava o oitavo sono.

O futuro ainda é nosso, realmente.

Próxima faixa: PERDA TOTAL DA NAVE.

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bruna vilela
ENTRE LP

Pesquisadora de música e comunicação na UFPE, jornalista cultural e musicista de guitarra safada com delay excessivo e vocal soproso desafinado.