Que vens contar-me?

Daniele Gomez
ENTRE LP
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8 min readSep 11, 2020

Entrevista com Bruna Garófalo, musicista e colecionadora de experiências mundo afora.

Arte por Francielle Cota.

“A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de
amar. É ir em peregrinação, participando intensamente de
coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos
desde sempre e para sempre. É estar constantemente
emocionado, — e nem sempre alegre, mas ao contrário, muitas
vezes triste, de um sofrimento sem fim, porque a solidariedade
humana custa, a cada um de nós, algum profundo
despedaçamento.”

O fragmento acima, de Cecília Meireles, foi escolhido para abrir esta entrevista porque a narrativa pessoal da entrevistada envolve diferentes lugares. A construção da dimensão profissional na vida de Bruna está sendo marcada por experiências artísticas pelo mundo desconhecido.

Bruna Garófalo nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde iniciou estudos no campo musical cantando no Coral Infantil de Minas Gerais, do Palácio das Artes. Nunca mais parou. Tornou-se professora de música. Mais tarde, as vivências profissionais ganharam um novo sentido. Viveu seis anos no Estado da Bahia, em Vitória da Conquista e em Salvador, quando atuou como coordenadora de um Projeto de Educação Musical para formação orquestral no NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia). Lisboa é onde ela vive hoje. Lá está ela atravessando novas fronteiras e um contexto geral bastante distinto.

Foto de Divulgação.

Entre LP: Ei, Bruna! Antes de qualquer coisa, gostaria de saber como está sendo seu dia a dia durante a pandemia em Portugal.

Oi, Dani! Obrigada por me trazer pra perto de um coletivo feminino, onde a criatividade e as forças das mulheres se unem para se apoiarem e crescerem juntas.

Sobre a Pandemia em Portugal, está sendo assustador como nos outros lugares do mundo. O dia a dia fica confuso, cheio de incertezas, o comportamento das pessoas mudou de repente e nem a população e nem o país sabem como será a sociedade daqui pra frente. Em Portugal tudo parou. Quando estava crescendo o número de casos na Itália falava-se um pouco por aqui, mas ninguém entendia muito bem que teríamos que mudar toda a estrutura do país pra aguentar uma guerra. Foi chegando na França e na Espanha, ficando mais perto de Portugal e o governo fechou as fronteiras. O turismo diminuiu até acabar, os hotéis e restaurantes fecharam além de todos os comércios e serviços, os trabalhadores mandados pra casa, a única estrutura que permaneceu foi de supermercados, farmácias e hospitais. Os transportes públicos diminuíram e se tornaram todos gratuitos mas nem por isso estavam cheios, pelo contrário, praticamente vazios, porque as pessoas tem consciência do perigo da doença.

Eu moro em Lisboa, aqui a cidade vive muito em função do turismo. É estranho ver uma cidade anteriormente tão viva se transformar em ruas desertas repletas de medo do que está no ar. Com isso começou o isolamento. Pra mim e outros emigrantes têm um peso diferente estar nessa situação em outro país, sem os familiares perto, sem uma base de apoio, sem saber se o país — que não é o seu — vai te dar um suporte se precisar. Tornam-se dias de reflexão, de decisões, de cuidar da saúde física para estar com a imunidade boa e muita nostalgia. Quem não relembrou vários momentos que viveu porque os dias estão passando sem novidade e queríamos mesmo estar vivendo como naqueles momentos que nos lembramos? Daí também vem outros dias, de repensar os planos, de tentar projetar como será o mundo quando tudo voltar ao “normal”. São dias tranquilos para descansar, outros dias são turbulentos.

Entre LP: Soubemos que passou um tempão na Bahia antes de se mudar para Lisboa. Conte para a gente um pouco da sua experiência por lá e se chegou a levar algo desta vivência para a Universidade Nova de Lisboa.

Sim, morei 6 anos na Bahia, sendo 4 em Vitória da Conquista e 2 em Salvador. Ao chegar em Vitória da Conquista, logo substituí a maestrina Cláudia Cavalcanti no Coral UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) por 2 anos. Nesse trabalho tive contato com a expressividade do corpo para a regência de um grupo de 30 pessoas em busca do som que eu queria e podia obter com aquele grupo. Aprendi muito e ensinei através da doação a todos os temas que envolvem coordenar e reger um grupo artístico. Ao término do meu período na UESB conheci o NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia) e coordenei, desde a sua abertura, o Núcleo de Vitória da Conquista por outros 2 dois anos antes de ser transferida para Salvador. É emocionante poder trabalhar a música no contexto socioeducacional, ser agente na transformação de crianças e adolescentes que experimentam a linguagem musical e tudo o que o Programa as oferece: a união, a sensibilidade, o sistema organizacional de uma orquestra, a beleza do resultado sonoro, a autoestima do palco, a criação e a realização da capacidade de aprender.

O NEOJIBA é aquele lugar de trabalho com amor, de fazer o que se acredita ideologicamente, onde encontrei pessoas que pensam a arte e a música da mesma forma que eu. Se trouxe comigo algo desta vivência na Bahia? Sim, levarei para todos os lugares que eu for. Nos estudos, depois de passar por essa experiência, me ajudou no pensamento crítico pelo meio da análise social de como a música é uma expressão nata e necessária da sociedade cultura de onde é feita. Entre tantos outros desdobramentos desse ponto, também outros pontos me acompanham nos estudos.

Foto divulgação Coral UESB, 2015.
Concerto de Natal com Orquestra Conquista Criança – NEOJIBA, 2017.

Entre LP: Você é mestranda em Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa. Aqui no Brasil você já foi regente coral, produtora cultural, gestora pedagógica, professora. Fala um pouquinho da sua trajetória?

Comecei cantando no Coral do Infantil de Minas Gerais, do Palácio das Artes, bem novinha. E continuei sempre estudando na adolescência até que tive uma professora de canto (Marina de Castro Assis — em memória), que me ensinou a dar aula de iniciação musical e canto. Fiz estágio com ela, comecei a trabalhar bem cedo e fiz faculdade de música. Procurei sempre trabalhar a música e o canto como expressão artística para além da técnica.

Dei aula em escolas de música e escolas de ensino regular em Belo Horizonte por vários anos. O instrumento voz é muito interessante. Ele está no corpo, produz som a partir do ar, musculatura e intenção do cantor. Acrescenta-se a energia, as expressões sonora e corporal que são pessoais, a expressão textual (com ou sem letra), o ajuntamento com outros instrumentos e/ou vozes. Senti a necessidade de aprender mais a parte biológica para entender melhor este instrumento e formar melhor meu alunos, foi quando estudei Fonoaudiologia.

Depois entrei no mundo da regência coral, a partir da experiência na UESB. Moldar várias vozes juntas é encantador!O trabalho no NEOJIBA exigiu um conjunto de competências: a música orquestral, a formação pedagógica, o conteúdo sociológico, a gestão de equipe, gestão administrativa, gestão e execução de projetos, entre outras.

A produção me ocorreu quando percebi que gosto de realizar, organizar, planejar e colocar a mão na massa pra fazer acontecer. O movimento de participar da circulação da arte é gratificante. No NEOJIBA fiz esse trabalho como uma das competências de coordenadora, ao mesmo tempo em que uma grande amiga produtora, Edmilia Barros me chamou para trabalhar em alguns projetos, me ensinando e apresentando a movimentação cultural de Salvador. É uma outra forma de trabalhar com a arte, nesse caso sendo agente desde a concepção até a realização de um produto artístico.

Produção do Sofar Sounds Salvador, 2019.

Entre LP: Em Belo Horizonte, muitos grupos têm se esforçado e usado a criatividade para combater a tragédia do COVID- 19. Como os artistas que você conhece em Portugal estão lidando? Há iniciativas do governo ou da sociedade portuguesa para apoiá-los?

Como no Brasil o fazer artístico em Portugal tem sentido negativamente o impacto. Grandes artistas são menos prejudicados porque têm público formado e a carreira mais estruturada. O governo e algumas empresas e instituições culturais lançaram editais de apoio que beneficiaram muitos artistas porém não é suficiente para todos e nem suficiente para arcar com os gastos normais. Sabemos que o setor cultural é, na sua maioria, de trabalhadores informais.

Aproveito para citar a iniciativa muito legal de um grupo de produtores culturais que criou um projeto de recolha e doação de alimentos #AjudeAjudarPortugal usando seu trabalho articulador para fazer o bem.

Tenho visto algumas lives acontecendo em Portugal, alguns artistas apostando em vídeos para circular na internet, mas tudo com projetos pequenos e pouco estruturados. Temos muitas ideias, mas não nos preparamos para novos formatos, não deu tempo. E também tem outras questões, por exemplo produzir em meio a uma pandemia e isolamento social. Artista é artista porque sente com intensidade o mundo que o cerca e transforma sua expressão em uma linguagem. Neste momento em que estamos, as pessoas estão tentando fugir da realidade ouvindo músicas bonitas, assistindo filmes e séries que as transportam para outras situações, lendo livros e poesias esperançosos… o artista não se engana! Ele está sentindo profundamente o caos misturado com a incerteza financeira que urge nas contas a pagar. Então como expressar coisas bonitas e organizadas?

Entre LP: Para encerrar, queremos saber sobre o seu trabalho com o GTN (Grupo de Teatro da Nova) e sobre suas novas perspectivas.

Na Universidade tinha um anúncio que precisavam de uma produtora para o Grupo de Teatro, pensei ser uma boa oportunidade para aprender sobre a produção artística de Lisboa. Em Belo Horizonte trabalhei como atriz de um grupo de teatro por 8 anos, era um paralelo às atividades musicais que tinha na época, por isso é prazeroso pra mim estar novamente nesse meio. O GTN é um grupo de teatro universitário, sua história tem mais de 30 anos.

Estou conhecendo aos poucos os caminhos da produção daqui, mas ainda tenho muito o que aprender. Cada cidade tem seus artistas, a forma que o público se comporta é diferente, os teatros e espaços de eventos são outros, os apoios financeiros também são diferentes. Por ser outro país é ainda mais desafiador. O projeto do GTN este ano é sobre o Almada Negreiros, um multi artista português contemporâneo do Fernando Pessoa. A diretora, Marina Albuquerque, uma grande atriz portuguesa, está adaptando textos dele e dirigindo a peça que teria sua estreia em abril mas o mundo parou e tivemos que mudar o formato para vídeo. Estamos ainda na produção desse novo formato. Ainda não sabemos como vai ser o mercado das artes para esse ano. Temos que nos adaptar.

Sobre Lisboa, é uma cidade antiga e moderna ao mesmo tempo. Em vários quesitos parece que estão atrasados e, em outros, sinto que se forma a união de várias culturas em um movimento ainda não organizado, mas que tende se organizar e crescer muito em identidade artística e comportamento do público. Como vai ser não sei exatamente, mas quero estar presente pra viver a Nova Lisboa.

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Daniele Gomez
ENTRE LP

Escritora, Bacharel em Letras, Multiartista, Feminista, Geração Perdida de Minas Gerais. Escrevo poesia no transporte público, quando entro em transe nas ruas.