Tradução como ofício coletivo (e criativo): sobre a cooperativa Redemoinho
Confesso que fiquei surpresa e feliz quando vi no Instagram da Redemoinho que eles creditaram o Entre LP como inspiração direta para a formação da cooperativa. Principalmente feliz, porque trata-se de uma proposta maravilhosa, cunhada pelos tradutores Clarice Macieira, João Vitor, Camilla Fellicori, Nathália de Ávila, Peter Faria Heine, Diogo Silva e Juliana Cajives. A ideia desse grupo descentralizado é a união em torno do ofício de tradutor, pela causa (nobríssima) de amplificar o nome de autores, preferencialmente os marginalizados ou renegados pelo mercado editorial. O grupo apresenta semanalmente traduções para o português de obras escritas por nomes como Dorothy Parker, Gotō Ikuko e Mark Fisher.
É muito honroso para nós, como coletivo de mulheres, saber que contribuímos um pouquinho para dar gás a ações tão incríveis como a Redemoinho. Afinal, nosso desejo é cada vez mais ver coletivos de escritores, tradutores, enfim, de amigos unidos em torno de um trabalho que — ainda que não seja remunerado financeiramente — tenha como retorno algo muito maior, a possibilidade de falar sobre artistas que merecem ser apresentados para o mundo. Afinal, o compromisso com a memória e com a história contada sob uma perspectiva decolonial é o principal motivador que nos une enquanto profissionais, coletiva e cooperativa.
Conheça um pouco mais do incrível trabalho feito pela cooperativa Redemoinho Traduções nessa entrevista para o Entre LP.
Damy (Entre Lp): Pessoal, muito obrigada por terem topado esse bate-papo! Pra gente começar, como surgiu a ideia de se unirem em um coletivo de traduções?
Clarice: Bom, primeiramente, nos colocamos como cooperativa, por motivos ideológicos, e não como coletivo. As cooperativas de trabalhadores existiram e existem até hoje e é uma forma em os trabalhadores se reúnem e “tomam os meios de produção”. Em Exárchia na Grécia, há todo um bairro autogestionado, que abarca a editora Babilônia, por exemplo.
Em resumo, não estamos subordinadas a nenhuma empresa, nem aplicativos, que precarizam o trabalho do tradutor. Então, a ideia parte dessas organizações augestionadas desde a Espanha na revolução civil, desde os Gregos e seu quarteirão antifascista e autogestionado, até as editoras brasileiras independentes como a TSA e a editora Lampião que produzem e vendem seus livros a preços módicos. Também não podemos deixar de citar a editora Entremares que disponibiliza o pdf do livro, disponibiliza a ideia de doar, ou mesmo de comprar o livro em si.
Essas iniciativas de cunho libertário, se quiser dizer anarquistas, foram o pontapé. Isso tudo veio da minha formação no meio anarquista, ainda que eu seja uma péssima leitora — ainda. Então, somos uma cooperativa sem fins lucrativos (preciso de terminar de ler esse livro que o Kaique da “el coyote” me passou, e que é uma pessoa crucial na criação da redemoinho), que paga os salários aos tradutores, e que se autogestiona — em reuniões por exemplo — sem que ninguém esteja submetido ao mercado tradutório individualista, muitas vezes precarizado, mediado por empresas grandes, ou por aplicativos tipo ifood que nos pagam uma vergonha.
Falando ainda sobre inspirações, a EntreLp e a revista Cupim também foram inspirações de ver que era possível criar conteúdo voltado para essas questões. Por isso, agradecemos muito o espaço e a “observância” e admiração que eu sempre tive por vocês desde o início. Pelas conversas com a Damy inclusive de contribuir com a EntreLp em algum momento. Obrigada, suas lindas! Parece babação de ovo, mas não é. Eu juro e a Damy está de prova.
Entre LP: Qual o escopo/ as obras privilegiadas por vocês para a tradução?
Clarice: Escolhemos sempre autoras e autores dentro do nosso recorte literário: ainda que famosos em seus respectivos países, completamente ignorados em língua portuguesa. São Mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, etc. Nos interessamos por descobrir esses autores, quem foram, o que escreveram. E por essas vias vamos caminhando e descobrindo coisas incríveis e sem traduções. Achamos um pecado! Claro que cada um se identifica e separa um tempo com aquela figura…eu mesma já traduzi dois contos da Dorothy porque me identifiquei com sua escrita. Mas já quero descobrir outres. Trabalho de pesquisa, de escavação, arqueológico de quem foi deixado para trás. Será porquê?
Acaba que nossas escolhas vão se entrelaçando e criando narrativas entre si. Isso está sendo delineado agora. Ainda estamos em processo quanto a “termos uma sequência” a seguir.
Entre LP: Por que vocês optaram pelo formato coletivo em um trabalho que, pelo menos de fora, parece tão individual?
Clarice: O formato é de cooperativa porque trabalhamos juntos em todos os setores: de comunicação, de manutenção do site, de postagens. É cooperado também porque nós nos ajudamos nos nossos textos, damos opiniões, sugestões, a serem acatadas ou não. Trabalhamos juntos. A questão individual aparece só na assinatura do texto, mas está sob o portfólio da própria redemoinho, faz parte dela. Não é descolado.
Entre LP: O que vocês estão traduzindo no momento?
Clarice: Eu estou traduzindo Lucy Parsons para um futuro um pouco distante, que é uma autora ex escravizada e anarquista e feminista. Quero trazer alguns autores libertários, especialmente mulheres. Mas ando buscando algumas literaturas também, apesar de ter me apaixonado completamente pela Dorothy Parker.
Nathália: Estou traduzindo Guy de Maupassant, tendo em vista o dia das bruxas, já que era um autor conhecido na França por seus contos e vários desses têm a temática de horror e suspense. Mais dentro da proposta do grupo, a próxima será a autora e filósofa feminista Tanella Boni, da Costa do Marfim. Isso também é muito afim à proposta do mestrado que eu e o Peter fizemos na França e na Alemanha, que por discutir prioritariamente a descolonização do pensamento, privilegia intelectuais de países cuja produção é desconhecida ou pouco consultada. Além disso, essa contribuição vem da constatação óbvia do excesso da presença masculina na academia no âmbito filosófico, o que me cansa profundamente.
Entre LP: Qual autora vocês descobriram por conta da tradução e acham que todo mundo deveria conhecer?
Clarice: Sem sombras de dúvidas, Dorothy Parker. Ativista, contista, indicada ao Oscar…tudo isso e um só livro publicado no Brasil. E nada de poesia dela. Especialmente, adoro os contos. Absolutamente apaixonantes.
Nathália: Marie Claire Bancquart, que dispõe de uma certa atenção a objetos e cenas muito cotidianas, como fazia Manoel de Barros e inúmeras poetas contemporâneas na França, que estão vivas e em atividade. A única autora francófona cuja obra é mais recente que eu conhecia antes era Margueritte Duras.
Entre LP: Como é o processo criativo de vocês?
Clarice: As coisas andam indo bem rápido e fluidas ultimamente. Mas nos reunimos sempre às sextas feiras para deliberar sobre pendências ou para sugerir novidades.Então, estamos a mil!
Entre LP: Vocês traduzem também o trabalho de escritoras brasileiras?
Clarice: Por enquanto, temos como foco trazer e descobrir autoras e autores da gringa para cá e não o caminho contrário. Ele é mais penoso para tradução (inversa) e também dependeria que tivéssemos contato lá fora para mostrar o que estamos traduzindo. Não temos público, em suma, para disponibilizar traduções para outras línguas de autores brasileiros. Mas é uma vontade nossa sim, porque isso diz sobre visibilidade lá fora de autoras e autores brasileiros, para além do cânone. Mas é isso: teríamos de ter o trabalho de contactar sites e revistas gringas independentes, editoras….então it’s a long way. Mas um dia a gente chega lá.
Entre LP: Nós, do Entre LP, admiramos demais a proposta de vocês! Eu acredito que muitos tradutores podem se unir e se inspirar no Redemoinho, principalmente porque a atividade da tradução, apesar de tão importante, não é das mais incentivadas nas faculdades de Letras.
Na verdade, a história do tradutor no Brasil é invisível, e começam a surgir livros sobre essa temática. Isso é incrível. Espero que com a Redemoinho, a gente possa puxar um pouco do olhar do público mais próximo, que enxerga nossas existências e histórias, já que estamos interagindo nas redes sociais (e somos acessíveis!). E que novas formas de trabalho sejam possíveis. Obrigada demais!