Uma dose generosa de PJ Harvey e sua obra atemporal

Francielle Cota
ENTRE LP
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4 min readJun 23, 2020

A lição número um que a quarentena me ensinou: é preciso se reinventar. Aprendizados, entendimento dos meus processos e adaptações. Dedico esta sobrevivência pandêmica aos manifestos artísticos e seus impactos positivos.

As fotos de divulgação do disco “Rid Of Me”, por Maria Mochnacz, complementam a perfeição do álbum ao mostrar PJ despida (literal e metaforicamente) de qualquer aura.

Descobri Polly Jean Harvey — mais conhecida como PJ Harvey — nem precoce, nem tardiamente. Sua obra iconoclasta e pujante me aconteceu no momento certo. Uma das maiores figuras da música dos últimos 30 anos, PJ abriu portas com um rastro de sensualidade, fúria e excentricidade, que ajudou a tirar o rock feito por mulheres das margens, elevando-o para o mainstream nos anos 90.

A jovem Polly Jean Harvey, em um campo no ano de 1979, em Dorset.

Polly Jean Harvey nasceu em 09 de outubro de 1969, numa vila rural inglesa de Abbotsbury, em Dorset. Passou seus primeiros anos de vida na fazenda de sua família, onde executava diversas tarefas, dentre elas, castrava ovelhas. Ambos os seus pais amavam blues, jazz e rock, o que a tornou exposta a música desde a infância.

Ela apareceu para o mundo no ano do meu nascimento. Em 1992 com o álbum Dry e rapidamente se estabeleceu como uma das vozes mais interessantes do rock alternativo: feminismo, amor, questões do corpo, sexualidade, religião, tudo se encontrava em canções expressivas e cruas, intercaladas ao som de guitarras viscerais e ruidosas.

Dia após dia desse período incerto de isolamento se tornou quase impossível para mim segurar os momentos pavorosos e angustiantes de ansiedade. A música e o sentimentalismo tão profundo de PJ me caíram como uma luva. O seu ar frágil e desajeitado no início da carreira, contrastava de forma dramática com a poderosa energia das canções. Mesmo com seu jeito único, acredito que sua vulnerabilidade nunca a abandonou, tornou-se uma força. Quando a ficha caiu e a música bateu de vez, foi muito importante para mim. Dissecar as composições uma a uma e descobrir a saída do casulo desta artista admirável tem sido necessário.

Courtney Love (vocalista do Hole e esposa do falecido Kurt Cobain — que listou Dry como um dos seus discos favoritos), disse certa vez: “A única estrela do rock que me faz saber que sou uma merda é Polly Harvey. Não sou nada perto da pureza que ela experimenta”. A declaração de Love chegou à luz do segundo álbum de estúdio da artista.

O talento inicial de PJ Harvey crepita e queima

O aclamado álbum Rid Of Me, de 1993, é sobre devoção em detrimento, sobre uma tensão de amor que é mais uma doença do que uma bênção. Há um boato de que o produtor do álbum, Steve Albini, viu PJ Harvey comer nada além de batatas assadas durante o processo de gravação do álbum — e eu acredito nisso. Você precisa ser louco para fazer um disco tão aterrorizante como esse.

Capa de “Rid Of Me”, por Maria Mochnacz.

Sujo, intencional e abstrato. Este álbum é realmente um farol brilhante na discografia da carreira de PJ Harvey. Uma mulher que encontrou uma versão melhor de si mesma sob suas feridas abertas. Após a turnê Rid Of Me, Polly Jean deu um tempo nos holofotes para passar por outra metamorfose, ressurgindo com a obra-prima do blues-rock To Bring You My Love e um visual totalmente novo. Este processo também ressignificou os outros trabalhos que estavam por vir.

“Se você quer ser bom em alguma coisa, precisa trabalhar duro. Não cai apenas do céu. Eu trabalho todos os dias tentando melhorar minha escrita e realmente gosto disso. Nada me fascina mais do que juntar as palavras e ver como uma junção delas pode produzir um efeito bastante profundo. ”

PJ permanece uma musicista cool, icônica e atemporal

O tempo passou, e a cantora, de 50 anos, considerada multi-instrumentista, compositora, artista visual e performer, experimentou outros formatos sonoros e poéticos, sem jamais se acomodar. Transições do rock ao pop, do folk ao eletrônico, do jazz à música de protesto.

O trabalho da PJ sempre esteve ligado a uma seriedade profunda por turnos que sublinham a diferença entre o admirável e o emocionante. Mantém uma identidade própria que atravessa todos os seus dez discos lançados, talvez seja esse o segredo de uma carreira invulgarmente sólida e interessante.

Foto: Maria Mochnacz

E foi justamente no período da dolosa quarentena, que PJ Harvey presenteou os fãs pelo mundo afora com a versão demo de “Sheela-Na-Gig” e reedição de todos os seus álbuns em vinil.

“Há muito de tudo no mundo, mas particularmente tudo o que não é tão bom. O mundo não precisa de mais arte, tudo bem. Ele só precisa de coisas alucinantes, inspiradoras e que mudam a vida.”

Uma playlist revisitando a obra lançada por PJ Harvey ao longo de seus 30 anos de carreira está disponível no Spotify do ENTRE LP. Deleite-se!

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Francielle Cota
ENTRE LP

Jornalista amante da película 35mm e boa prosa.