O Privilégio Da Mediocridade

Glauco Lessa
Meandros
Published in
3 min readApr 16, 2023

Quando resolvi voltar a escrever ensaios, eu sabia que a insegurança de falar de assuntos que não domino totalmente ressurgiria, e a ideia era confrontá-la. Aqui nos Meandros, eu não quero ter respostas nem conclusões. “Perder-se para se encontrar” é o lema (inclusive já escrevi um texto sobre perder). Por isso, eu vou errar — e espero errar sem destino, sem chegada.

E antes que me perca ainda mais, eu preciso reconhecer que isso é um privilégio. Meu texto tem gênero, raça e orientação sexual. Errar é um privilégio ao qual muitos não podem se dar — ao menos não sem receber a mesma generosidade que eu recebo.

Essas pessoas precisam calcular bem suas palavras e atitudes, sempre preocupados para não pisar em ovos. Os que não sucumbem a essa lógica cruel acabam se talhando e se moldando na excepcionalidade. Mas eu — eu não posso falar por essas pessoas. Posso apenas falar por mim.

E, por mim, eu digo: como é bom ter o privilégio da mediocridade!

Não me entenda mal. Este não é um texto de autocomiseração. Não quero me fazer de vítima nem ser visto como uma. Não quero me colocar acima nem abaixo de ninguém. Quero me colocar no meu devido lugar.

Não sou o único a desfrutar dessa dádiva. Talvez você mesmo a possua. Não é tão somente uma síndrome do impostor — é olhar para o lado e reconhecer o quanto pessoas com mais dificuldades conseguem se provar tão excepcionais, de forma que não temos certeza se conseguiríamos se estivéssemos no lugar delas.

Não precisa ser uma competição — embora, no mundo em que vivemos, muitas vezes seja. E, ainda assim, a mediocridade vence. Não à toa é um privilégio tão grande. No, entanto, isso não nos impede de olhar no espelho de vez em quando. Mais cedo ou mais tarde, acabamos diante dele.

E quando isso acontece, o mal estar é tremendo. Tentamos levar uma vida correta e honesta, então é claro que é difícil reconhecer que nos beneficiamos da injustiça. Muitas vezes, isso nos leva à negação: “eu fiz por merecer, sim!” Outras, nos vemos em um lugar sem propósito: obsoletos enquanto homens cisgênero, carrascos enquanto brancos, castradores enquanto heterossexuais.

A questão é que, para além das nossas capacidades, sofridões e conquistas pessoais e legítimas, o palco do mundo mudou sua peça, e muitos seguem relutantes em acompanhar o roteiro. É excelente que o mundo tenha mudado e agora não possamos mais esmagá-lo sob nossos pés. Sem nosso papel, o que nos resta? Negar tudo que foi feito em nosso benefício? Culpar as vítimas? Tomar uma pílula vermelha? Entrar em uma escola de arma em punho?

Os últimos espasmos dessa masculinidade branca e sangrenta ainda fará agonizar muita gente inocente. Quando me olho no espelho, sei que há várias boas respostas sendo discutidas por quem entende do problema, mas gostaria de terminar com uma sugestão.

Para variar, será que conseguimos ser gentis com as pessoas que já tanto fizeram sofrer? Será que conseguimos também ser gentis com nós mesmos? Talvez o mundo fosse um lugar melhor se nos permitíssemos chorar, se não nos envergonhássemos ao pedir ajuda, se não nos recrudêscessemos em nosso sofrimento. Talvez essa seja nossa forma efetiva de participar e construir o mundo, em vez de destruí-lo.

Talvez.

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Glauco Lessa
Meandros

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.