Porque O Bem-Te-Vi Também Era

Glauco Lessa
Meandros
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4 min readMay 7, 2023

Desde muito pequeno, meus pais evitaram que eu fosse a enterros. Eles mesmos nunca gostaram de ir. E quem gosta? Meu pai costuma dizer que só foi ao enterro do próprio pai e que o enterro da minha avó será seu último. Isso, é claro, se tudo der certo.

De forma um tanto previsível, eu cresci com um pensamento muito parecido. No meu caso — e pela minha ausência de fé na época —, sempre tive a justificativa de não precisar me despedir de um corpo, já que não havia mais ninguém ali. Um argumento racional, talvez até frio e insensível para alguns.

Não estou aqui para dizer que quem evita enterros está certo ou errado. Cada um lida com a morte como pode — e se pode. Alguns precisam ver o morto, tocá-lo uma última vez, fazer uma prece, ver o caixão ser fechado. Outros precisam ficar com seus próprios pensamentos e sentimentos, sangrando em solidão ou anestesiando-se de maiores dores. Nunca é fácil.

Minha mãe passou a ir a enterros depois de uma certa idade. Perguntei o que a fez mudar de ideia. Segundo ela, um enterro não tem tanto a ver com se despedir do morto. É a oportunidade de dividir a dor e o sofrimento da perda. Em um último momento, as desavenças, desentendimentos e até mesmo indiferenças ficam de lado — todos se tornam um com a dor, com as boas lembranças, com a saudade.

Não podendo mais falar com o falecido, ouvimos histórias sobre ele que não conhecíamos, da mais tenra infância à adolescência rebelde, de seu maior arrependimento à sua maior realização. Em um certo sentido, é como se o falecido estivesse ali não pela presença de seu corpo, mas pela presença das pessoas que o amam.

De tudo isso fui poupado quando menor e me poupei quando maior. Não fui a enterros de parentes nem de amigos. Talvez tenha sido para melhor. Talvez eu não estivesse pronto. Cada caso é um caso, afinal. Algumas despedidas são mais difíceis que outras.

Não importa tanto agora, porque o passado é a terra dos mortos. Não importa tanto agora, porque eu fui, enfim, a um enterro. Não importa tanto agora, porque minha tia morreu.

Foi uma experiência que nunca mais vou esquecer, e não foi de um mero conhecido ou parente distante. Foi da minha tia que me viu crescer e que tanto me admirava. Pode soar estranho dizer isso, mas eu sou grato por um evento tão importante na minha vida ter sido por causa dela, ainda que por um motivo tão triste.

Já que despedidas assim pedem por anedotas, aqui vai uma: numa época em que importar brinquedos não só era caro como difícil, minha tia moveu mundos e fundos para me presentear com o presente de Natal que eu mais queria: um boneco em tamanho real do Buzz Lightyear, com os botões de fala e tudo. Tenho o brinquedo até hoje. Mesmo que ficasse meses ou até o ano inteiro sem vê-la, o Natal sempre era o momento em que ela marcava presença com seu senso de humor peculiar e um carinho incondicional.

Minha tia teve a felicidade de viver uma vida com o homem que amou, ainda que ele tenha partido primeiro. Foi feliz em ver a filha criada e seguir a própria vida. Foi especialmente feliz pelo neto que ganhou.

Minha tia era bem teimosa e turrona. Também não gostava da ideia de ser enterrada, preferindo o sepultamento vertical. Em meu último momento ao lado de seu caixão, fiz questão de colocar quatro flores, uma para cada Nobre Verdade, todas para cessar qualquer sofrimento. Foi ao mesmo tempo uma súplica silenciosa e uma aspiração afetuosa.

Ao lado das sepulturas verticais, uma imensa parede branca demarcava o fim do cemitério. Meus primos disseram que chegaram a haver sete pássaros sobre o muro. No momento em que encarei, havia apenas um bem-te-vi — ele olhava para baixo, para o caixão, para nós. Como se tivesse chegado atrasado, mas ainda a tempo de se despedir de minha tia.

Cada um dá o significado que quer a esse tipo de coisa, inclusive nenhum. Para minha família cristã, sete é o número da perfeição, o dia do descanso. E faz sentido, ainda mais pela fé católica da minha tia. Para mim, porém, o único bem-te-vi sobre o muro, entre o vale da sombra e da morte das sepulturas cinzas e verticais, estampado contra o límpido céu azul acima de todos nós… é o Samsara. O Nirvana.

Eu estava triste. Aquele corpo não era mais minha tia, mas ainda era. E estava sendo sepultado em um lote que marcava H44. Por um momento, foi como se ela fosse e apenas tivesse sido H44. Mas o bem-te-vi me lembrou que minha tia ia, foi, vai muito além disso. Na verdade, ela não havia ido a lugar algum.

Porque o bem-te-vi também era minha tia Sueli.

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Glauco Lessa
Meandros

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.