Saber Perder

Glauco Lessa
Meandros
Published in
3 min readApr 10, 2023

Jogos competitivos incentivam seus participantes a ganhar sempre que possível — e muitas vezes, a qualquer preço. Longe de ser o objetivo, perder não só é o pior resultado como um subproduto do resultado principal: a vitória. Para haver vencedores, deve haver perdedores. A depender de quem perdeu, a derrota serve de aprendizado, incentivo ou punição por suas jogadas.

A ideia aqui não é fazer pouco de jogos competitivos — pelo contrário. A competição é fundamental e saudável para qualquer um. Ao medir forçar com o outro, não necessariamente queremos aniquilá-lo, mas sim entendê-lo, porque precisamos nos ver nele para efetivamente superá-lo. A questão é a vitória. Muitos jogos nos preparam e nos treinam para vencer, nunca para perder.

Mesmo em jogos cooperativos, a vitória é a estrela no palco. Ou vencemos todos juntos, ou perdemos todos juntos. Entre desavenças e possíveis intrigas, a união ainda é necessária para um bem maior — talvez o maior bem de todos — vencer. Perder também é um subproduto. Mais consoladora por um lado, já que ninguém venceu às custas dessa derrota. Mais amarga por outro, porque não houve triunfo algum.

RPGs de mesa estão em um lugar curioso quando se trata de perder. As linhas de vitória e derrota não são tão bem definidas. O jogo costuma ser cooperativo, mas o que seria vencer exatamente? Superar os desafios impostos pelo mestre? Realizar os objetivos pessoais do seu personagem durante a campanha? Subir de nível e ganhar novas habilidades?

Talvez.

No entanto, não são raros relatos de que os momentos que mais trouxeram ganhos para o jogo foram os de derrota. A morte de um personagem querido. A destruição de um reino. A queda moral de um importante aliado. A famigerada falha crítica. Então, o que ganhamos em situações como essa, se não estamos de fato vencendo?

Esses “acidentes felizes” não são exclusivos do RPG. Talvez pela narrativa ser muito imprevisível e fluida de acordo com as atitudes dos personagens, isso só pareça mais evidente. Jogos de videogame e de tabuleiro também contam histórias e permitem ao jogador encarnar personagens interessantes.

Ainda assim, é no RPG que eu sinto que o objetivo é perder. Vencer é o subproduto.

Contamos histórias para nós mesmos o tempo todo, mas uma que evitamos a todo custo é a história da perda. Essa é a história que perpassa todos nós, a todo momento, impregnada em todas as coisas. Mais um segundo vivido é menos um segundo vivido, ainda que leve a mais um segundo vivido. A história de nossas vidas envolve perder — e muito.

A perda de um primeiro amor. De um amigo de infância. De um parente. Da virgindade. Da imaturidade. Da ignorância. Se tudo der certo em nossas vidas, perderemos muita coisa antes de perdermos a própria vida — e, ainda assim, poucas coisas nos ensinam a perder.

Seguimos focados em ganhar em um jogo em que tudo que precisamos saber é perder.

Quando jogo uma mesa de RPG — quer dure uma sessão de quatro horas, quer dure uma campanha de quatro anos —, me empolgo com todos os possíveis ganhos: a experiência, os níveis, os itens, os poderes. Mas não posso deixar de notar: cada característica que escolho é a perda de tantas outras, cada aventura vivida é a perda de outras tantas. Evoluir um personagem e uma história é um exercício de acúmulo e ganhos, sim, mas sempre na contrapartida da subtração de muitas outras possibilidades. Um livro de RPG é uma pedra de mármore; seu personagem e sua história, uma estátua esculpida.

E quando chega o momento derradeiro — seja porque o grupo não pode mais se encontrar, seja porque o vilão final foi enfim derrotado e o mundo foi salvo — , a história chega ao fim, e junto dela, também acaba o jogo. Tudo terá sido divertido, mas o fim, por si só, é uma perda. A perda dos encontros no sábado, de personagens tão queridos, de laços tão profundos. Irreproduzíveis, inimitáveis. Porque todas as histórias têm um fim, e se têm um fim, contam uma história ainda maior. A história da perda.

Muitos jogos me incentivam e me preparam para vencer. Mas quando jogo RPG, quanto mais eu perder, melhor.

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Glauco Lessa
Meandros

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.