Conotações

André Renato
entre signos
Published in
5 min readFeb 4, 2016
Ilustração “ao pé da letra” de uma expressão com sentido conotativo.

É muito fácil a gente aprender na escola a diferença entre denotação e conotação. Qualquer professor ou livro didático vai dizer que sentido denotativo é a mesma coisa que sentido “próprio” e sentido conotativo a mesma coisa que sentido “figurado”.

E, normalmente, a gente entende sentido figurado como um sentido não-literal, um duplo sentido que está lá graças a uma curiosa semelhança com o significado original (denotativo) da palavra. Por exemplo, vamos ouvir “Drão”, do Gilberto Gil:

O começo da música diz:

Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar

Grão pode significar não somente “pequena esfera, partícula, semente de certos cereais, legumes, etc.” (dicionário Houaiss), mas também “amor”, o “amor da gente” — no contexto da canção. E por quê? Porque o amor, na visão do poeta, tem que “morrer pra germinar”, criar uma nova vida.

Assim como faz a proverbial semente de trigo, na passagem bíblica, também muito rica em conotações: “Em verdade, em verdade, vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (João 12, 24 — A Bíblia de Jerusalém).

Desse modo, Gilberto Gil não está falando exatamente de sementes, de agricultura. Ele quer falar de amor. E grão é apenas uma figura, uma imagem usada para fazer a gente entender o que é o amor, de um jeito especial. Eis a forma mais básica de sentido figurado / conotativo.

Mas as conotações de uma palavra também podem ser de outra natureza, a qual pode vir junto ou não de um sentido figurado. É quando a conotação carrega — em relação à palavra usada — impressões, valores afetivos (que podem ser positivos ou negativos), ideologias ou preconceitos. Ex.:

MST ocupa fazenda no Pontal do Paranapanema

Cerca de 400 integrantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) ocuparam no início da manhã desta sexta-feira, 7, a Fazenda Nazaré, em Marabá Paulista, no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do Estado de São Paulo. O Estado de S. Paulo, 07/10/2011.

MST invade fazenda da Cutrale no interior de São Paulo

Integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) invadiram na manhã desta segunda-feira (22) uma fazenda da empresa Cutrale no município de Borebi (308 km de São Paulo). Folha de S. Paulo, 22/08/2011.

No primeiro caso, o jornal se refere à ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como uma “ocupação”. No segundo, como uma “invasão”. Será fruto do mero acaso essa diferença na escolha de palavras? Ou será uma escolha deliberada e por qual motivo?

Não podemos ter certeza, sem uma investigação dos fatos relacionados à composição do texto. O que podemos saber, fazendo uma análise linguística, é: o verbo “ocupar” não possui, na maioria das situações em que é usado na língua portuguesa, um valor negativo.

Quando se diz que alguém ocupa algum lugar, o pressuposto que essa afirmação estabelece é que o lugar a ser ocupado estava desocupado, já que — como bem diz a ciência — dois corpos não ocupam um mesmo espaço ao mesmo tempo.

Por outro lado, o verbo “invadir” é carregado, geralmente, de valores negativos: quem invade toma um espaço já ocupado, à revelia do seu ocupante original. E isso já é considerado um ato de violência, não importando se a invasão será efetuada com força física ou não.

Por isso, podemos seguramente afirmar que, na língua portuguesa, a palavra “ocupar” (e seus derivados) não costuma vir carregada de conotações negativas, enquanto a palavra “invadir” (com os seus derivados) é, via de regra, acompanhada de conotações negativas.

De resto, podemos especular sobre os motivos de um jornalista ter escolhido “ocupar”, e o outro ter escolhido “invadir”, para noticiar a ação do MST. Talvez, eles tenham desejado comunicar implicitamente o seu posicionamento — favorável ou não — ao movimento.

Nesse caso, onde teria ido parar a famosa “imparcialidade” jornalística? Mas isso já seria trabalho para a Análise do Discurso, que é o campo da Linguística que estuda a dinâmica das conotações enquanto reveladoras de posicionamentos individuais ou coletivos (ideológicos).

A linguagem visual também pode expressar conotações: este quadro do pintor surrealista René Magritte intitula-se “O princípio do prazer” (1937). Tente adivinhar por quê.

No segundo caso, existe uma lição muito importante para aprendermos: as conotações que reproduzem valores, visões de mundo, ideologias ou preconceitos coletivos são, via de regra, construídas coletivamente, ao longo de muito tempo.

E quando um indivíduo usa no seu discurso, em tom afirmativo, alguma palavra que carrega tais conotações, ele está ajudando a reproduzir e reforçar essas mesmas conotações — não importa qual seja a sua intenção, ou mesmo se ele tenha usado a palavra sem pensar.

Individualmente, nós não temos o poder de “higienizar” um vocábulo de suas conotações socialmente estabelecidas, através de um consenso que, às vezes, perdura por séculos. Isso nos traz a ideia da responsabilidade muito específica que o falante precisa ter em relação ao seu próprio discurso.

Por exemplo, o humorista que sistematicamente se refere a indivíduos pertencentes a minorias usando termos os mais pejorativos, principalmente em seu discurso público, comete um ato muito grave de irresponsabilidade, quer ele perceba isso ou não.

A imagem acima pode carregar conotações de tristeza, angústia, abandono, solidão… Fotografia de Henri Cartier-Bresson: “Downtown, New York, 1947”.

E não adianta esse mesmo comediante tentar se justificar dizendo que não é preconceituoso, que são apenas palavras, que aquelas palavras não têm um valor negativo para ele, que a malícia está sempre nos ouvidos dos outros, que impõem uma “ditadura do politicamente correto”.

Pois tais palavras sempre estiveram associadas à violência (simbólica ou não) sofrida historicamente pelas minorias sociais. Muitas vezes, foram inventadas a partir dessa violência e muito contribuíram para mantê-la ou aumentá-la. Se antes não tínhamos conhecimento disso, hoje nós temos.

Em respeito a isso, nós precisamos tomar cuidado com a escolha de palavras cuja significação mais profunda está muito além da nossa esfera de intenções individuais. E, se queremos realmente uma sociedade mais evoluída em termos de valores, comecemos pelo nosso vocabulário.

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