A gata da família

Driccia Hellen
EntreFios - tecendo narrativas
4 min readDec 4, 2023

Criança atentada ou desastrada? Azarada ou sortuda? A pequena Cláudia Andrade teve três encontros com a morte e saiu “tirando onda”

Por Driccia Hellen

Claudia em sua adolescência / Arquivo pessoal

De pijama e sem se preocupar com o modo como estavam seus cabelos, Claudenia de Souza Andrade — ou, como gosta de ser chamada, Claudia — atendeu à videochamada já com suas brincadeiras costumeiras e descontraídas. A gata da família, conforme os mais íntimos brincam, já escapou da morte três vezes em sua infância agitada.

A memória nos leva para o interior do Ceará, na comunidade de Espraiado, no município de Acaraú, em meados da década de 1990. Lugarzinho litorâneo, onde os homens viviam da pesca; as mulheres, da renda. Local em que os vizinhos eram tios, primos e avós, e Claudia, como qualquer criança na época, adorava brincar com os pequeninos de sua rua.

Brincando de esconde-esconde com seus irmãos na casa de seus pais, com seus sete ou oito anos, resolveu esconder-se debaixo da mesa, e encontrou uma garrafinha de vidro com um líquido transparente. Com a sede provovada pela correria, resolveu beber pensando ser água. “Quando terminei de beber, já fui logo botando para fora, já fui logo ficando roxa”. O tom humorístico de sua voz é característico da família, mas na época foi desesperador.

O líquido da garrafa de vidro posta atrás da perna da mesa por seu pai, na intenção de evitar acidentes, continha querosene, utilizado em sua canoa. Na comunidade, não havia farmácia, a mais próxima ficava a sete quilômetros, em outro distrito perto, Juritianha. Chegando ao farmacêutico, ela foi encaminhada para o hospital de Acaraú, onde fez uma lavagem estomacal e foi receitada uma injeção para ser aplicada por um tempo.

Por sete dias, a rotina da pequena foi pegar um carro para a cidade vizinha logo cedo, pela manhã, esperar a farmácia abrir, tomar o medicamento injetável na bunda e voltar para casa com o irmão — “Lá se vinha eu, com a bunda furada da injeção na garupa da bicicleta, no carroçal”.

Em meio a caras e bocas, com um excelente humor, mesmo relatando momentos trágicos de sua história, ela continua. Mais adiante no tempo, porém ainda criança, Claudia recorda de outra memória. Agora se passa na casa de seu tio Manoel, irmão do seu pai Nicodemos e vizinho da família, mais especificamente no quintal.

Na época do ocorrido, a cacimba que havia nos fundo da moradia estava meio seca de água, mas cheia de cururu, pois tinha terminado o inverno. Um dia, Cláudia e seus colegas estavam à beira da cacimba olhando para seu interior quando um de seus primos mais velho chegou por trás e a assustou, tocando-a e empurrando-a um pouco, o que fez a criança cair anel abaixo — “O que me amorteceu na queda foram os cururus”.

“Foi um sufoco para me tirarem lá de dentro, já que a cacimba estava seca, não tinha água e não tinha como eu ir subindo de anel em anel porque estava cheio de cururu”. Ao lembrar do episódio, a agora adulta faz cara de nojo e brinca — “Salva pelos cururus”.

Cláudia não guarda memórias do primeiro dos três quase-encontros com a morte — que lhe ocorreu quando ainda era muito miúda — e, por isso, passa a palavra a seu irmão mais velho, Denis. Em um dia ensolarado de domingo, Zulene, uma prima mais velha, convidou as crianças da família para tomar banho na praia, colocando-se como responsável por elas.

Quando todos já estavam se banhando no mar, por um descuido dos irmãos mais velhos e pela adulta responsável, Claudia caiu em um buraco, conhecido como canal, e começou a se afogar. O pescador que estava trabalhando perto percebeu o afogamento da menina e correu para ajudar. Depois de a menina recuperar o fôlego, pois tinha engolido muita água, a responsável por ela agradeceu ao homem e decidiu voltar para casa.

Após todos os ocorridos, Cláudia contraiu, aos dez anos, uma bactéria estomacal que a fez ser levada para morar com o irmão de sua mãe em Forquilha, para ficar mais próxima do hospital localizado em Sobral. Com o tempo, a garotinha foi gostando de morar com os tios e não voltou mais para a casa de seus pais, mas nunca perdeu o contato e a proximidade que tem com os irmãos.

Hoje, Claudia completou seus quarenta anos, é casada e mora na capital do Ceará, Fortaleza. Sempre com o humor impecável, ela gosta de levar esses assuntos com leveza, contando as histórias para suas sobrinhas, sobrinhos e afilhados. Ela, meio gripada, finaliza a chamada — “Eu tinha asma, mas depois de beber gás [querosene] curou tudo, vim saber o que era um nariz entupido agora”.

Com uma alma de jovem, Cláudia cativa e é amada por todos, principalmente por sua sobrinha, que se distrai conversando com a tia. Papo vai, papo vem, risadas e saudades tomam de conta da chamada que se estende por horas e, finalmente, é desligada.

A “gata” ainda tem mais quatro vidas para usar.

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