A isenção de culpa comprada pela moeda social

[ARTIGO] Sem constrangimentos, Wesley Safadão escolheu que vacina receber e, de quebra, sua esposa, Thyane Dantas, conseguiu furar fila

Por Camila Fontenele Garcia

Vacinação no Brasil chegou aos 30 milhões de imunizados neste domingo, dia 11 de junho / Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Quando alguém usa sua plataforma nas redes sociais para postar um vídeo de si e de seu marido tomando a vacina contra Covid-19, a primeira reação esboçada por uma pessoa inserida no contexto sociopolítico do Brasil em 2021 deveria ser de alegria, satisfação, felicidade por mais uma pessoa estar protegida contra a doença que já levou as vidas de mais de meio milhão de brasileiros, abandonados à própria sorte pelo seu presidente.

E se o marido for um cantor famoso? E se o nome da esposa dele não constar em lista alguma de agendamento para aplicação da vacina, em qualquer posto da cidade de Fortaleza, no Ceará, onde reside? E se a vacina recebida pelos dois for a recém-chegada ao Brasil, a Janssen, conhecida como a única do mundo a ser aplicada em dose única? E se todas essas condições se sobrepõem a um mesmo caso, e a tal blogueira/influencer/modelo for uma mulher branca, milionária, com mais de 3 milhões de seguidores em sua conta no Instagram, como se justifica a ação de postar um story mostrando que foi vacinada, mesmo sabendo que não deveria ter sido?

Furar a fila da vacina não é crime, mas infração de medida sanitária preventiva, estelionato e tráfico de influência são. Como se explica uma vacinação inadequada, fora de hora, além de ter sido baseada na prevalência da reputação e da influência, da troca de favores, sobre a ética e o cumprimento de regras estabelecidas com o intuito de salvar vidas?

Thyane Dantas, esposa do cantor Wesley Safadão, foi vacinada junto a ele em um shopping de Fortaleza, em 8 de junho. Ao tomarem a dose da vacina da empresa farmacêutica Johnson & Johnson, ambos postaram fotos e vídeos em suas redes sociais, sendo imediatamente criticados por parte do público. À época, Thyane não tinha idade para ser vacinada; as listas ainda não tinham chegado aos adultos de 30 anos.

Soma-se a isso o fato de que seu marido, Wesley, estava agendado para ser vacinado no Centro de Eventos do Ceará, e de alguma forma soube que em outro local da cidade estava sendo aplicada a Janssen. E para lá o casal se dirigiu.

Além da inadequação óbvia da situação, o que mais chama a atenção é a presunção de que não haveria consequências a uma transgressão óbvia. A blogueira sabia que não havia sido agendada, pois a imagem divulgada do sistema de cadastramento da prefeitura de Fortaleza mostra que ela foi atendida, mas não possui histórico de agendamento. Mesmo tendo ciência disso, acompanhou o marido ao local de aplicação, ato repreensível por si só por demonstrar que ela supôs merecer ser a única cidadã brasileira que pode acompanhar o cônjuge ao tomar a vacina. Se o intuito do agendamento é diminuir ao máximo as aglomerações nos centros de vacinação, qual seria a lógica por trás da ação de Thyane ao ir com Wesley ao local sem já ter a intenção de se vacinar? Afinal, não tem como saber que existirão “doses de sangria” quase dez horas antes da vacinação ser encerrada.

A antropóloga Izabel Accioly, professora de relações raciais e branquitude, diz que “a mediocridade e o privilégio branco fazem com que pessoas brancas sejam muito confiantes de que absolutamente nada do que fazem vai gerar consequências”.

Saber que está errada, que abusa de um privilégio fabricado para sair na frente das outras pessoas, como se a sua vida e a sua segurança contra um vírus que já possui quatro variantes letais circulando pelo planeta valesse mais do que a de uma pessoa comum, sem vantagens e sem moeda social pela qual trocar favores e regalias, ou até mesmo a pura exposição ao olhar público, e mesmo assim ir em frente e postar para que todos a vejam tirar proveito desse, sem pensar que sofrerá represálias, só pode ser considerado privilégio branco medíocre de classe alta.

O Ministério Público do Ceará está investigando a vacinação irregular de Thyane Dantas, assim como a possível prática do que é conhecido na internet como “sommelier de vacina”, uma vez que seu marido escolheu que vacina receber.

Todas as justificativas dadas pela assessoria dos dois já foram refutadas pela Secretaria de Saúde e pelo prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT). Em meio ao alvoroço causado nas redes sociais pelo ocorrido, só nos resta esperar para ver se as leis funcionam ou não como um sistema de pontos, onde cada seguidor do Instagram pode ser contado como um “des”agravante de delito.

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camila fontenele garcia
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