A mulher de trinta, vinte anos depois

Clara Klink
EntreFios - tecendo narrativas
5 min readNov 30, 2023

Como no romance de Balzac, Chrislene Cavalcante escolheu a educação para viver como uma mulher moderna

Por Clara Klink

Chrislene em Salvaterra, Marajo, 1991; ela passava dias viajando de barco em suas aventuras / Arquivo Pessoal

Chrislene Cavalcante nasceu em Belém, cercada pela água do rio e pela que caía dos céus. A segunda filha de Lindimila e Osvaldo, foi no Pará onde fincou suas primeiras raízes — da melhor forma que uma vida de retirante poderia garantir.

Até os onze anos de idade, a família alternava entre morar em casas dos parentes, “de favor”, e morar de aluguel nas palafitas do Beco do Fuxico, até que o pai perdesse o emprego e não tivessem mais como pagar e o ciclo se repetisse. Foi nesse período que ela se fez uma promessa: estudaria para mudar de vida e oferecer mais para os filhos.

Aos doze anos, ela e a família conquistaram a casa própria, no município de Ananindeua, no Pará. O pai continuava instável na questão do trabalho, mas o despejo não era mais realidade. Com o apoio da mãe, a promessa foi se cumprindo; se Chrislene estivesse com um livro, ela sabia que não era hora de pedir ajuda. Quando terminou o ensino médio, trabalhou para pagar um bom cursinho para a filha. O agradecimento aos esforços da mãe foi o seu resultado: no pedaço de jornal guardado até hoje, a sua aprovação no curso de História da Universidade Federal do Pará.

A vida com a mãe era compartilhada com uma cumplicidade e com códigos só delas. Quando o dinheiro sobrava e encontravam algo que lembrasse a outra, compartilhavam presentes. Os beijos e abraços não eram cotidianos; ficavam reservados para aniversários, Natal, Ano Novo e na ida e volta das viagens de movimento estudantil.

Mas os abraços esporádicos da mãe terminaram três dias depois do seu aniversário de 22 anos. Em setembro de 1993, Lindimila faleceu durante o sono, vítima de uma doença cardíaca. Chrislene recebeu a notícia na casa da melhor amiga, por ligação, enquanto finalizava a monografia que deveria apresentar em breve. Com o telefone na mão, tudo parecia passar devagar. Era como uma cena de novela em que a personagem recebe uma notícia que a fez perder o chão. Para ela, isso só existia na ficção; mas naquela madrugada, se viu presa a um momento em que a vida imitava a arte.

O luto chegou como uma tempestade. Por dois anos, nos sonhos encontrava com o abraço acalentador e o sorriso da mãe. Mas quando acordava, ainda estava presa a uma garoa de tristeza e saudade. No velório, imaginava que a dor passaria; ainda não sabia que o luto era uma ferida aberta. Suas raízes paraenses pareciam maculadas pela falta. O desejo de ter filhos era questionado; como ter filhos que não terão o calor do abraço de vó?

A pobreza a fez uma retirante na infância, mas a perda a fez uma adulta imigrante.

Primeiro foi Macapá, quando passou a ser professora do ensino básico. Uma conquista que foi como um dos momentos em que se sente que a vida vai mudar. Não ficou muito tempo lá. Chegou outro momento de mudança, quando se tornou professora da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), em Sobral, no Ceará, ainda tímida para construir raízes.

O desejo pelos estudos não terminou, e assim se viu realizando um sonho. Em 2001, foi para Campinas, em São Paulo, ser estudante de doutorado na Unicamp — “estudar com as referências, os grandes”. Lá, na casa dos trinta anos, sentiu-se preparada para enfrentar o que parecia ter abandonado: a maternidade. Antes do título de doutora, ganhou o de mãe e novas raízes com o estado de São Paulo.

Mas era em Sobral que ela florescia. Com o diploma de doutorado e uma filha, voltou para a cidade e para a UVA. Novamente foi mãe, dessa vez de um sobralense. Enfrentou dificuldades e sofrimentos de uma separação, apesar de nada doer como a morte da mãe; o luto serviu como lugar de onde tirar forças para enfrentar os problemas. Uma romântica, realizou o sonho de casar. Do casamento, a última filha nasceu. Todos os filhos com nome de santo, como cantava Renato Russo: Clara, Carlos e Joana.

A maternidade despertou um novo eixo de cuidado, diferente do que tinha com os irmãos mais novos e os sobrinhos. Tornou-se uma mãe com os desafios de conciliar a vida feminina moderna de trabalho com o cuidado, com erros e acertos — os filhos dizem que mais acertos do que erros. Os livros e pensadores foram seus ajudantes em como lidar com os conflitos geracionais. Uma mulher “balzaquiana”, como no livro “Mulher de Trinta Anos”, que buscou a independência antes da maternidade.

Em 2021, a casa da família em Ananindeua foi derrubada. Uma ação do Governo do Estado do Pará para a construção de um viaduto relembrou a dor do que aquela casa significava para Chrislene; era o leito de morte da mãe. Com um riso que carrega mais ironia e dor do que alegria, ela conta que, na última vez em que visitou o terreno, a placa sobre a obra estava no mesmo lugar que a cama onde a mãe morreu. Pelo menos nenhum carro passaria por lá.

Hoje, aos 52 anos, ela é mais velha que a mãe.

Chrislene é cidadã sobralense. Mais do que isso, é uma das imortais da Academia Sobralense de Estudos e Letras (ASEL), ocupando a cadeira treze. Depois, tornou-se a primeira mulher a presidir a academia. Ela, que pensava não haver mais espaços para ser pioneira, se viu abraçada na cidade que não chove e nas vidas que transformou — dos familiares que a acompanharam, dos alunos que ensinou e dos filhos que criou.

“Eu guardo em mim dois corações: um que é do rio e um que é do sertão”

Chrislene com a sua mãe, Lindimila, no quintal da casa que moravam, 1990 / Arquivo Pessoal

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