“Andei por andar, andei; e todo caminho deu no mar”

Andressa M.
EntreFios - tecendo narrativas
6 min readOct 22, 2020

Encontros e desencontros da vida marítima de Marcelo Natividade, cantor, ativista e professor da UFC

Por Andressa Monte

Em meio à inércia de uma quarta-feira cotidiana, Marcelo Natividade se encontra calmo e reflexivo. Ariano forte, comodismo não é uma característica comum à sua pessoa. Não mesmo.

Aqui, por mera simplicidade de uma autora em constante batalha contra o bloqueio criativo, destacarei três faces de Marcelo: o artista, o ativista e o cientista.

Marcelo em sua faceta artística / Arquivo Pessoal

“Arte é axé, espírito santo, dádiva divina”

Assim Marcelo se sente ao poder manifestar esses frutos da arte em sua existência. Seja na música, contemplando as interpretações de Fátima Guedes; seja no teatro, com a força cênica no chão do palco de madeira; seja na poesia, oculta e magnífica, declamada nas canções de Maria Bethânia.

Carioca da gema, teve uma infância de pouco a se vangloriar. Da hostilidade das vielas urbanas, encontrou conforto na arte, ou melhor, nas grandes intérpretes da música brasileira: Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Alcione, Fátima Guedes. Na passionalidade, o eu lírico feminino o possuiu de uma forma transcendental, para além da perspectiva psíquica e física. Para ele, algo inexplicável no plano meramente terrestre.

Uma personificação que entoa até hoje em sua formação profissional e humana, resultando numa relação, por vezes, curativa.

Em um dos anos mais difíceis de sua vida, em que os fogos de artifício do réveillon de 2019 se transformaram numa anunciação de pesar pela partida do seu pai, a arte o salvou. Em crises de pânico e depressão, a MPB foi relento. E nessa necessidade de conforto, da dor surgiu a Dádiva.

Foto de capa do disco Dádiva / Reprodução - Instagram

Dádiva é, inclusive, o título do seu mais recente disco, que consagra a música brasileira como uma celebração de luz e de espiritualidade ao seu bem maior: o mar. A ele, Marcelo destinou alguns longos minutos de nossa conversa.

Fátima Guedes, de quem é fã declarado desde a juventude, está presente hoje como sua parceira musical e amiga.

Pode-se dizer que não vive sem a música, nem ela poderia viver sem Marcelo.

Com sua personalidade errante, encontrou alguém que pudesse amar sua liberdade, sem condições, sem julgamentos.

De forma eterna e irrepetível. Não seria dado a alguém, mas a algo: a música.

Marcelo Natividade e sua outra faceta, o ativismo / Reprodução - Facebook

“Não podemos aceitar o inaceitável”

Sob forte ar de revolta ao saber sobre a recente ação do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, de excluir diversas personalidades negras da lista de condecorações do órgão, Marcelo demonstra que não tem medo de levantar suas bandeiras diante de um desafio.

Acredita que foi destinado a transgredir, subverter padrões e ideologias pré-estabelecidas para construir um mundo mais livre e acolhedor.

Mas como o mar de Marcelo desaguou no ativismo?

De uma infância em que era objeto de infinitas agressões cotidianas, encontrou na vida universitária uma forma de ser quem sempre quis ser e contar sua própria história, mas também de poder escutar outras tão interessantes quanto a sua.

O militante Marcelo Natividade / Reprodução - Facebook

Em meio à efervescência cultural e intelectual dos corredores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), encontrou seu viés de militância e de educador.

Sendo o primeiro na família a integrar o ensino superior, Marcelo obteve o privilégio de passar por pessoas extraordinárias durante a graduação. Entre elas, Leonardo Boff, exímio pesquisador da Teologia da Libertação, que acabou por influenciar suas percepções atuais em relação à ciência e à religião.

A sua primeira formação, Jornalismo, também fomentou seu espírito transgressor com mais inquietação e curiosidade. Ainda na juventude, mais consciente e defensor de suas causas, participou de diversos movimentos sociais, como o Grupo Atobá, um dos primeiros grupos ativistas de afirmação homossexual no País.

Da descoberta desse admirável mundo novo, colorido e libertário, Marcelo pode enxergar também na arte um espaço para ativismo, ou melhor, “artivismo”, como diria ele.

Marcelo segura imagem de Marielle Franco / Reprodução — Facebook

Para Marcelo, há sempre espaço para discutirmos política, seja em nossas manifestações artísticas, culturais ou educativas, sendo comunicadores ou não.

Sob cantoria dos trechos de “Peça Desculpas”, composição de Fátima Guedes, conta que sente na arte uma espécie de ativismo ancestral, algo que transcenderia esse plano e sua existência.

Não é algo fácil de se explicar em uma mera entrevista, confessou.

E quanto mais fosse atacado, mais se sentiria à vontade para atacar, sem ter medo do que é e do que se tornou. Porque todos nós somos fruto da contestação, da divergência, da insurgência, da trajetória, por onde passamos e com quem vivemos para construí-la.

Afinal, somos eternas lutas de corpos em aliança, somos militantes, somos marítimos.

Marcelo em sua faceta insurgente na ciência, quando foi professor e pesquisador na USP, “um centro de efervescência cultural” / Reprodução — El País/Bruno Fujii

“Minha compreensão quanto à ciência é sobre tornar a vida das pessoas melhor”

Como Marcelo define a si mesmo: é antropólogo, pesquisador, jornalista, artista e “professor bixa”. Não tem medo algum de assumir sua orientação sexual para alunos e colegas, mesmo que a academia ainda proporcione obstáculos para sua atuação, entre eles a homofobia.

Movido por esse orgulho de quem é e se tornou, defende uma Ciência LGBT, um espaço para que mais produções científicas representem valores da comunidade e outras minorias sociais, difundindo, assim, um conhecimento tão necessário a uma sociedade historicamente cruel, intolerante e segregada.

Fugitivo de um arcaísmo científico vigorante, Marcelo foi pesquisador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), após várias inquietações incitadas por grupos de antropólogos que conheceu. Atualmente é professor do curso de Ciências Sociais da UFC.

Autor de inúmeros artigos sobre parentalidade LGBT e contestação do papéis de gênero na sociedade, hoje se debruça sobre pesquisas a respeito de igrejas mais inclusivas para a comunidade LGBTQIA+ e a respeito da ressignificação de alguns dogmas religiosos, além do combate ao fundamentalismo religioso e à LGBTfobia ainda presentes nas igrejas católicas e neopentecostais.

Ser científico / Reprodução — Facebook

Com grande consciência acerca de suas contribuições científicas na academia, sabe que a luta para construir uma ciência mais inclusiva, diversa e engajada é árdua, porém recompensadora.

Para Marcelo, antes de tudo, os cientistas devem ser ativistas e comunicadores, logo, capazes de difundir o conhecimento obtido para além de sua bolha social e definir um posicionamento atuante na sociedade.

Se não são, acabam se tornando maus cientistas.

A docência também não está dissociada do ser científico, pois é no ser professor que é possível observar mais diretamente os efeitos de suas contribuições na comunidade em que atua, sobretudo, em seus alunos.

Adora inquietar os estudantes. Questões bem fundamentadas funcionam melhor que respostas pré-concebidas. E é na dúvida que se encontra o verdadeiro saber sobre as coisas.

Essa é a persona científica que Marcelo Natividade construiu e da qual se orgulha. E esse apreço por adquirir e transmitir conhecimento se deve muito às memórias que construiu e às escolhas que fez ainda em sua época de estudante na Uerj.

Pela perspectiva de Marcelo, é possível dizer que o verdadeiro aprendizado não está nos textos acadêmicos. Somente na forma como você se permite descobrir nesses espaços de saber, dando abertura à compreensão do que é diferente e novo e se aprimorando cada vez mais como ser, pode-se dizer que aprendeu algo verdadeiramente valioso: a humanidade.

Marcelo e o mar: um encontro transcendental / Reprodução - Facebook

Dessa consumação complexa de fios e personas, Marcelo desaguou.

Múltiplos rios personificados em facetas que formam — deságuam — em seu ser — seu grande mar.

“Quem vem para a beira do mar não quer mais voltar”

Afinal, essa é sua vida: cigana, passageira, marítima.

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Andressa M.
EntreFios - tecendo narrativas

Histórias, resenhas, opiniões, poesias, crônicas e outros frutos psicodélicos oriundos da minha mente 🧞‍♀️ @andressasmonte (tt) @andybelezura(insta)