Ari Areia: “Eu me meti nessa coisa pra tentar de alguma forma profanar a política”

Mari Fernandes
EntreFios - tecendo narrativas
45 min readAug 12, 2021

Em entrevista ao EntreFios, o ator, jornalista e ativista político destaca pontos importantes da sua trajetória, de suas memórias da infância e de seus projetos marcantes

Por Ana Alice Guedes, Carolina Galvão,
Jaírlos Marques, Mariana Fernandes,
Millena Araújo e Rogeslâne Nunes

Nesse período de pandemia, a cultura e a política foram assuntos recorrentes nos noticiários. O teatro e a política estão inteiramente relacionados. Muitas vezes, o próprio ato teatral é político. Ambos exploram e condicionam a natureza humana e a relação de uma pessoa com seus semelhantes.

É na ligação entre essas duas áreas que nosso entrevistado se encontra. Para debater a importância desses dois setores em sua vida, o EntreFios recebeu, em 23 de julho, o performer e ativista Ari Areia. Ele é fundador do Outro Grupo de Teatro, participante do Fórum Cearense de Teatro, do Fórum Cearense LGBT, da Articulação Nacional de Trabalhadores da Cena (Atac), do Pavio e do Movimento Todo Teatro é Político. Performou em várias peças, a exemplo de Comer Querer Ver (2021), Caio e Léo (2014) e Histórias Compartilhadas (2015). No setor político, tornou-se o primeiro suplente de deputado estadual pelo Psol no Ceará.

Confira a entrevista na íntegra no vídeo abaixo e alguns trechos transcritos a seguir.

Carolina Galvão: Bom, Ari, é um prazer ter você aqui com a gente hoje. Eu já agradeço de antemão pela sua participação, pela disponibilidade do tempo. Eu sou a Carolina Galvão e a gente vai começar com as perguntas. A primeira pergunta que eu queria te fazer hoje é sobre o seu período no teatro. Você se formou no curso de Princípios Básicos de Teatro, do Theatro José de Alencar, em 2012, com orientação do Silvero Pereira, e eu queria saber de onde veio esse seu interesse pela arte, principalmente no teatro.

Ari Areia: Então, essa minha história com o teatro começou ainda muito novinho. Teatro e política estão sempre presentes na minha vida desde as minhas memórias de infância, porque eu tenho um tio, Gerardo Damasceno, que é ativista político, é militante do PCdoB e é também diretor de cinema e teatro. Então lá no Pirambu, onde eu nasci, essas memórias do meu tio comunista que lutou contra a ditadura e ao mesmo tempo a primeira peça de teatro que eu fui assistir na vida foi uma peça dele, assim, que eu lembre, que eu tenho memória da peça, eu lembro da história, eu lembro dos efeitos que apareceram em cena. O primeiro filme que eu trabalhei na vida foi um filme dele. Então a minha história com teatro começa muito por aí, nessa referência desse tio que era militante político e era também de teatro e de cinema. Mas eu lembro que a primeira memória que eu tenho com o teatro foi um passeio da escola. Eu lembro que eu fui, não lembro de nada que eu tenha visto, eu lembro do Theatro José de Alencar. Lembro dos vitrais, lembro do jardim, o espetáculo para mim foi o teatro, de fato, o prédio. Isso também diz sobre as dimensões do teatro, o teatro físico, o teatro monumento, o teatro espetáculo. Mas quando eu comecei a fazer teatro? Foi na igreja, tu acredita? O meu pai é pastor evangélico e eu adorava tudo que dizia respeito a expressões artísticas e culturais. Só que o que eu mais gostava eram as coreografias. Na Assembleia de Deus, tem sempre um movimento de coreografias, eles pegam as músicas pentecostais e fazem uns movimentos, umas coisas. E eu não podia dançar, porque ia ser um pouco escandaloso o filho do pastor dançando. Então eu geralmente coreografava e as meninas executavam a coreografia. Só que no teatro eu podia. No teatro era aceitável para um garoto fazer dentro da igreja, e eu comecei a fazer teatro na igreja, fazia peças, recitava textos, monólogos extensos recitando trechos bíblicos. E no ensino médio eu tinha algumas opções. Minha mãe falou assim “faz um curso de arte”. Música ela não queria que eu fizesse porque ela achava que eu podia desistir, começo a fazer e dá três meses e eu mudo de ideia. Ela já teria comprado uma bateria, comprado um violão, comprado um violino. Aí ela disse “teatro”. Porque no teatro eu não ia ter que fazer nenhum tipo de investimento direto, era eu mesmo. Acho que talvez ela tenha se arrependido um pouco, porque pegou. Comecei a fazer ensino médio e nunca mais larguei. Inclusive eu precisei largar o teatro no terceiro ano do ensino médio por conta do vestibular e eu voltei com o teatro por conta da Universidade. Essas peças todas que você comentou aí, de alguma forma o jornalismo foi me trazendo de volta para o teatro. Começou mais ou menos por aí essa história.

Carolina Galvão: Em 2011, você fundou o Outro Grupo de Teatro junto com Yuri Yamamoto e o Tavares Neto. De onde surgiu essa necessidade de vocês criarem um grupo teatral próprio?

Ari Areia: Eu passei para Jornalismo na UFC em 2010.2. Então eu já tinha cumprido com a missão, com o dever, a obrigação de entrar na Universidade. E aí eu fiquei mais ou menos um ano fora de teatro, fora dos palcos. Essa experiência do teatro na escola foi muito importante porque não era só o teatro de escola, a nossa professora-diretora Alexandra Marinho, levava a gente para ver teatro na cidade, para participar de festivais. Então eu já tinha uma vivência e aquilo começou a tomar conta de mim de uma forma muito interessante. Por conta do vestibular, meus pais deram uma enquadrada. Fiquei um ano sem fazer nada de teatro. Aí eu não aguentei. Um ano depois eu estava inquieto, precisava fazer alguma coisa, aí o Yuri, a gente era amigo de algum tempo, ele me via nos festivais que eu participava, gostava muito de mim, ele me propôs um texto, chamava Elucubrações. Esse texto abre o espetáculo Comer Querer Ver. Ele me levou para tomar um café, aí eu li aquele texto e falei “gente, eu não consigo visualizar como é que isso aqui se levanta, não consigo imaginar como é que monta isso aqui”. E eu fiquei muito instigado, porque era um texto que eu não conseguia visualizar de jeito nenhum. Eram oito laudas só com perguntas: “E se eu não abrisse os meus olhos? E se eu passasse o resto da minha vida aqui deitado? E se eu não me levantasse? E se eu não escovasse os meus dentes nunca mais? E se eu não comesse nunca mais?” Ele ia durante 15 minutos só “E se? E se? E se? E se?”. Eu achei genial. O Yuri é genial. E a gente, para inscrever num festival de teatro, que era a ideia, a gente precisava ter um nome do grupo. Aí eu botei Outro Grupo de Teatro. Era uma coisa sem pretensão. E aí essa coisa do “outro” virou uma característica de algumas coisas que eu tenho colocado, criado iniciativas, é o Outro Grupo de Teatro, é a Outra Casa Coletiva. O Tavares Neto e a Helena Vieira vão fundar uma editora e parece que o nome vai ser Outra Editora, não tenho muita certeza. Mas eu acho que começou com uma falta de criatividade que acabou sendo ressignificada. Eu gosto, acho interessante essa coisa do “outro”. E meio que instintivamente a gente começou a desenhar uma pesquisa, não foi assim “ah, vamos criar um grupo para falar sobre isso”, mas eram as nossas realidades, eram as nossas inquietações, eram os nossos desejos. Foi por causa do Caio e Léo que eu saí do armário dentro de casa. Eu ia estrear um espetáculo em que eu beijava outro menino e isso ia dar um burburinho muito grande, então eu precisava sair do armário antes que isso… enfim, na minha cabeça. Eu acho que hoje em dia eu até reflito que não necessariamente precisaria ter saído do armário. Mas na minha cabeça, naquela época, eu precisava sair do armário porque eu ia estrear o espetáculo. E na sequência vieram outros mergulhos mais profundos sobre a questão da identidade de gênero, Histórias Compartilhadas. O Tavares e a Helena estão estreando um espetáculo semana que vem, Psychopathia Sexualis, que é uma viagem muito interessante, é um espetáculo sobre um livro homônimo que é a primeira vez que surge na literatura mundial, o termo “heterossexualidade” e “homossexualidade”. Ou seja, a heterossexualidade não é desde sempre, ela passou a existir a partir de um dia em que ela foi cunhada. Então a gente foi dando esses mergulhos, mas não foi assim “ah, vamos montar um grupo para debater essas questões”. A gente se percebeu repetindo alguns debates ou aprofundando alguns debates, e de repente o Outro Grupo de Teatro virou esse instrumento de debates importantes, de movimentação da cidade entorno do teatro que para mim foi genial como que o teatro pode ser muito perigoso a ponto de um grupo, um ator ser notificado pelo Ministério Público Federal, ser ameaçado de morte. Eu fico muito feliz de estar voltando aqui à UFC que é a minha casa, e na época em que o espetáculo sofreu tentativa de censura, a Reitoria, que era uma Reitoria relativamente razoável, abraçou o espetáculo, me ofereceu segurança porque estava sendo ameaçada a minha integridade física. O Outro Grupo de Teatro é mais ou menos isso, foi uma coisa boa que surgiu e despretensiosamente se transformou em uma árvore, uma sementinha que caiu ali e brotou bonito.

Carolina Galvão: Como a Millena disse, você é formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará e o seu TCC foi justamente em formato de uma peça teatral. Como você chegou até isso? Como você escolheu optar por esse formato de TCC e não pelo modelo tradicional de um texto acadêmico?

Ari Areia: Desde o meu primeiro semestre eu já sabia que eu queria falar sobre as vivências das pessoas transexuais. Acho que na cadeira de Metodologia eu fiz um trabalho, acho que era 2011, segundo semestre, tinha acabado de ser aprovada uma portaria no Ministério da Saúde que autorizava pessoas transexuais a usarem o nome social no cartão do SUS. E eu falei “eu quero estudar essa vivência”. Não sobre o processo transexualizador, quero estudar a vivência das pessoas transexuais que cotidianamente precisam utilizar o SUS. Saber como é que é isso. Eu quero acompanhar esse processo. Sei lá, teve uma gripe, uma dor de dente, quebrou um pé… E aí, eu tive uma conversa com o Silvero Pereira que era meu professor e era uma referência nesses debates, e aí ele falou assim: “Ari, tem muita gente já falando de travesti, falando de mulheres trans, talvez você precisasse encontrar um caminho que fosse mais inovador para não ficar se repetindo”. E aí, por essa época eu conheci o João W. Nery. Ele foi o primeiro homem transexual no Brasil, que se tem notícia, a fazer um processo de intervenção física de retirada das mamas. Inclusive ele fez um redirecionamento da uretra para poder fazer xixi em pé. Isso tudo na época da ditadura. Tem um livro chamado Viagem Solitária da Editora Leya em que ele conta neste livro toda a trajetória dele desde a infância até o processo final. E quando eu conheci o João W. Nery, se descortinou para mim uma face da transexualidade que não sabia, que eram as transexualidades masculinas. Eu tenho memórias também de infância, em que a primeira travesti que eu reconheço era a Bochecha. A Bochecha tinha um salão de beleza na rua da minha casa, Rua Letícia lá em Messejana, casa da minha mãe. E eu lembro que quando era mais novinho, pré-adolescente, criança, o meu pai ia deixar a gente na escola e eu lembro que a gente não podia pisar na calçada da Bochecha. E eu não sabia muito bem o que era a Bochecha. Na minha cabeça a Bochecha era uma mulher muito grande. Ela era realmente muito grande, muito avantajada. E quando comecei a ir sozinho para a escola, eu lembro que eu olhava para trás e quando não tinha ninguém olhando eu ia pela calçada da Bochecha. De alguma forma esse universo sempre me encantou e eu sempre quis de alguma forma encostar naquela coisa que era proibida, que subvertia tudo. Então quando eu conversei com o João W. Nery pela primeira vez, eu entrevistei o João W. Nery, e eu fiquei absolutamente encantado com a força daquele homem e com a forma como ele explodiu caixas na minha cabeça, porque na minha cabeça era uma mulher que queria ser um homem. Eu era um jovem de terceiro semestre de Jornalismo, eu tinha pouquíssima leitura de questões de gênero e sexualidade e o João W. Nery usou essa expressão mais didática: “eu não sou uma mulher que quer ser um homem, eu sou um homem que nasceu no corpo errado”. Ele falou assim : “Você é menos homem que seu pai porque você é gay ?” Aí eu falei assim :“não”. Aí ele me disse : “E eu sou menos homem que você porque eu não tenho um pinto”? E o João W. Nery se vocês colocarem no google, vocês vão ver as imagens dele, antes dele falecer, ele era um senhorzinho, parecia meu avô. Não tem como você dizer que ele é não é um homem. Ele é um homem, obviamente. E ele explodiu caixas na minha cabeça que foram muito importantes, eu falo assim: eu quero falar sobre transexualidades masculinas. E aí lá vou eu “né”, escrever um TCC tradicional, só que essa inquietação, sabe… estética, essa inquietação artística, ela não me deixava enquadrar a coisa toda num TCC tradicional. Aí eu falei “tá”, o Jornalismo me permite fazer um documentário, me permite fazer… enfim, eu vou fazer uma outra coisa, eu quero mexer com o cinema. Aí comecei a fazer, selecionar personagens, desenhar roteiro e como é que seria isso e tal e tal. Só que não tava fluindo e, gente, não tava fluindo mesmo, aí o meu orientador que foi o Daniel, professor Daniel…Ele falou assim : “Ari, o que você quer fazer com isso, com esse material depois que tudo isso passar?”,aí eu falei assim: ‘‘Amigo, eu quero fazer uma peça. Depois que eu me livrar desse peso, eu quero pegar tudo isso e transformar em teatro. Aí ele falou assim: “Então faça uma peça”. Aí eu falei assim: “Pode fazer uma peça?”, ele falou assim: “Bem… o programa ele diz que você tem que fazer, concluir apresentando um projeto experimental em comunicação, se você conseguir provar para a sua banca que a sua peça é um projeto experimental em comunicação, então tá ok. Aí eu falei : “Tá bom”. Aí eu montei o “Histórias Compartilhadas” e tinha que ser em 20 minutos, aí eu apresentei um enxertozinho dele, um trechinho de 20 minutos com as principais cenas e fiz uma bagunça, uma mistura entre o jornalismo e o teatro que não é ou foi uma coisa de agora, 2015. É uma coisa do começo do século XX, (quando) as pessoas já faziam teatro documental. Essa linguagem, essa estética, ela é inclusive muito disseminada. Inclusive, há décadas elas já usavam projeção, já usavam trechos de jornais. Então o que eu fiz foi pegar coisas que já existiam, que era o teatro documental e colocar minha pesquisa lá dentro. Como eu não podia fingir ou interpretar um homem trans, porque seria um equívoco, seria feio, seria questionável. Então a gente “lançou mão” da performance. E eu coloco os homens trans e seus depoimentos de forma direta, em áudios e vídeos. E enquanto essas mídias passam a cena, eu afeto meu corpo de alguma forma a partir daquilo que eu tô colocando na cena, então assim é o peso do garrafão de 20 quilos, é uma veia que eu acesso na cena e o sangue, ele sai de verdade. A viagem que me trouxe para o universo da transexualidade masculina foi essa e as escolhas estéticas que a gente foi fazendo, também vieram mais ou menos por aí. Ah! E foi a primeira vez que aconteceu uma coisa dessas né, de um trabalho na comunicação ser finalizado com um espetáculo, com uma cena, uma performance. Eu acho que depois disso já vieram outras coisas interessantes também e (quanto) a aprovação, eu tava apavorado porque o meu medo era de a banca não considerar aquilo um trabalho em comunicação. Mas a banca considerou, foi aprovado com nota máxima, foi a Beatriz Furtado e o Wellington Oliveira, queridos.

Jaírlos Marques: Ari, depois que uma foto da peça “Histórias Compartilhadas” viralizou na internet, você passou a ser alvo de ameaças e intimidações. A OAB-CE emitiu nota com críticas e em seguida o Ministério Público Federal (MPF) pediu esclarecimentos sobre esse monólogo. Tudo isso, uma clara tentativa de silenciamento que deu errado, porque depois de toda essa polêmica, te deixou ainda mais conhecido, a peça continuou em cartaz com sucesso de público e alguns meses depois você disputou a sua primeira eleição. O que eu quero saber é: como você avalia o impacto desta peça na sua vida? Existe um Ari Areia antes e depois de Histórias Compartilhadas?

Ari Areia: Eu acho que é exatamente isso, acho que essa peça foi um divisor de águas na minha vida, de verdade. Tanto porque eu consegui terminar a graduação, que eu estava levemente atrasado e talvez essa pergunta do Daniel de “o que você quer fazer depois que tudo isso passar, o que você quer fazer com esse material?” e eu falei “eu quero fazer uma peça”. Acho que eu falo isso para tudo. Se você me perguntar durante um processo eleitoral, que é muito angustiante, “Ari, o que você quer fazer depois que tudo isso passar?”. Eu quero fazer uma peça, quero mudar alguma coisa. Eu acho que eu acabo repetindo essa receita, quase como um dispositivo terapêutico. Inclusive na época que eu montei Histórias Compartilhadas, a primeira vez eu estava fazendo terapia. Gente, façam terapia, (ela) é muito importante. E talvez eu tenha conseguido finalizar o TCC e a própria montagem do espetáculo, justamente porque a terapia me ajudou a me organizar.

Tem um Ari Areia antes e um Ari Areia depois porque Histórias Compartilhadas me deu uma dimensão de que era de fato possível mover uma cidade a partir de um espetáculo de teatro.

E aí, eu não falo de um espetáculo de teatro de forma recortada, a partir da arte, a partir da poesia, a partir de algo aparentemente muito inofensivo, mas que moveu estruturas que eu nem imaginava que poderiam ser movidas. E isso deu pra mim uma dimensão sobre a importância do impacto daquilo que a gente pode fazer, nesse lugar micro que é o lugar da delicadeza. Assim, quando você monta uma peça de teatro, por mais forte, mais agressiva, por mais violenta que seja a sequência de imagens colocadas. Aparentemente ela é inofensiva, ela é uma peça de teatro. Você está falando ali para as 300 pessoas no máximo, sentadas ao mesmo tempo. É diferente do que acontece na Câmara Federal, acontece na Assembleia Legislativa, mas a peça de teatro moveu esses agentes nesses espaços, ela chegou a esses lugares. O espetáculo inclusive depois, as temporadas seguintes a essa polêmica, elas vinham com a chancela. O espetáculo nunca foi premiado, ele nunca recebeu um prêmio ou algo do tipo, mas tinha a chancela “notificado pelo Ministério Público Federal”, “repudiado pela Assembleia Legislativa do Ceará”, “repudiado pela OAB-CE”. Porque eu acho que tudo que eu faço na arte, a partir de Histórias Compartilhadas, eu faço tendo dimensão da possibilidade das consequências que podem ter. Eu não faço mais silêncio, sem ter dimensão do impacto que esse silêncio pode ter. Quando eu falo silêncio é no sentido de que às vezes a poesia está nele, mas foi muito surreal. Foi surreal pra mim, na medida do impacto institucional e no impacto na dimensão da vida das pessoas, porque eu lembro que eu recebia mensagens de amigos. Uma amiga falou assim : “Eu tava no ônibus e o vendedor de canetas Monaceli falou da tua peça indignado”. Aí outro falou assim: “Ari, minha mãe acabou de chegar da missa e o padre falou da sua peça”. Então assim, eu peguei um táxi na época e o motorista do táxi falava se não sabia quem era eu. Eu cheguei a ser parado na rua, gente, o cara me parou no centro, muito violento, não me bateu, mas a forma que ele chegou , (porque) ele chegou muito indignado, se o impulso fosse outro ele poderia ter chegado me batendo. Então, nessa época foi que o professor Henry, na época ele era reitor da UFC, ele me chamou no gabinete e eu passei quatro anos e meio na universidade e nunca tinha nem visto o reitor, exceto em solenidades como da formatura. E aí ele me chamou no gabinete dele e falou assim : “Você precisa de segurança?”, eu falei : Nossa, não, não faça isso porque a “bicha” chegando, descendo do carro na boate com dois seguranças, ninguém segura mais ela”. “Tô” brincando, mas não foi necessário. Mas tem um divisor de águas, eu acho que mais do que pela experiência específica em Histórias Compartilhadas. Eu sou filiado ao PSOL desde 2011, então tem dez anos, faz dez anos agora. Em 2016, eu decidi me candidatar por conta de Histórias Compartilhadas, então assim, mudou minha vida de fato. Nunca tinha passado pela minha cabeça.

Mas foi Histórias Compartilhadas que me jogou nessa esfera, porque eu tinha que reagir. E eu tinha que reagir numa esfera que afetasse eles de alguma forma, eles que eu digo (são) os conservadores.

E aí eu acho que Histórias Compartilhadas, talvez por ter acontecido em Fortaleza, no Nordeste brasileiro, talvez não tenha tido impacto nacional. Teve mais talvez foi um dos primeiros casos de tentativa de censura e de ataque a obras artísticas numa onda que se seguiu naquele mesmo ano. Ai eu tenho uma avaliação muito objetiva sobre o porquê que aconteceu exatamente nesse ano, já que o espetáculo estava há um ano e meio já de estrada na cidade; e os efeitos disso e como foi importante eu ter reagido. Ter reagido no sentido de ter me candidatado, por exemplo. Eu ter reagido no sentido de não ter “ouvido o latido’’ e ficado quieto. Eu ouvi o latido e lati mais alto. Eu acho que é um divisor de águas. Inclusive tem gente que depois de Histórias Compartilhadas, o impacto foi tão grande que tem gente que esquece que eu sou do teatro. Histórias Compartilhadas me levou para um lugar, me levou de certa forma que tem gente que fala assim: “eu não sabia que você era do teatro”. Mas (eu falo) “Nossa é só por causa do teatro que eu tô aqui nesse lugar, sabia?” É engraçado isso, mudou.

Carolina Galvão: Você falou bastante sobre reagir a todos esses acontecimentos na sua vida, e a gente sabe que você é um dos maiores defensores da pauta LGBTQUIA+ na sua atuação. E aí eu queria saber como você chegou até essa parte de efetivamente atuar na militância dos direitos humanos, da questão LGBTQUIA+. Como você chegou até lá, a de fato se filiar ativamente?

Ari Areia: Eu respondo essa pergunta já há algum tempo e eu já tinha até criado uma narrativa super bonitinha, super romantizada sobre como foi que eu comecei a minha militância LGBT. Mas, nesse último ano, inclusive no meio da pandemia, eu estava pensando sobre como foi que começou e eu escrevi até uma crônica na Mídia Bixa, “Sob o peso dos meus amores” é o título. Esse título, ele faz referência a uma obra do Leonilson, que é um dos artistas visuais que eu mais gosto. A obra dele é delicadamente muito profunda e inclusive esse posterzinho aqui é o espetáculo “Nós Tr3s Ninguém”, que é a partir da obra do Leonilson, um monólogo do Tavares. E tem uma obra do Leonilson que é um homem carregando um mundo nas costas, nos ombros e em cima tem “Sobre o peso dos meus amores” e embaixo “Sob os pesos dos meus amores”. E aí eu falo nessa crônica assim :”olha, talvez fosse pretensioso demais eu querer falar, gastar o tempo de vocês falando sobre o peso dos meus amores, mas pode ser que valha a pena eu gastar esse tempo de vocês com algumas linhas sob o peso deles” e eu falo, eu concluo o texto dizendo que a primeira vez que eu me senti de fato militante LGBT foi quando eu “tava saindo do armário” e eu me apaixonei loucamente pelo Tavares. Foi talvez o amor mais duradouro, foram 10 anos de história e assim como “Histórias compartilhadas” foi o que me fez decidir que eu ia sair da igreja, e não ter uma vida dupla, porque eu tinha uma vida dupla, e nesse comecinho a gente era muito novo, 22 anos, talvez, e eu lembro que a gente tava no Theatro José de Alencar, e a gente estava sentadinho de mão dada e o segurança falou assim “olha não pode ficar aqui assim desse jeito” e ficar ali assim desse jeito, era ficar sentado do lado do outro de mão dada, e nesse dia,

eu lembro que eu levantei a voz e nunca mais eu baixei.

Eu levantei a voz sob o peso dos meus amores, eu falo de uma forma muito carinhosa sobre essa história porque talvez sob o peso dos meus amores eu fui construindo um mundo, a luta por um mundo que eu gostaria de viver com aquele ou com outros amores que viesse, por que vem né? Mas eu acho que talvez tenha sido isso, talvez tenha sido ali, quando eu me reconheci de alguma forma. Porque existe uma diferença muito grande. Difícil de perceber, uma linha muito tênue entre a resistência e a militância.

A resistência é um movimento quase involuntário a gente que é negro, periférico, LGBT, as mulheres, pessoas com deficiência. Elas resistem espontaneamente, a gente resiste quase inatamente a partir do nascimento, o mundo está no contra fluxo em relação a nós, isso não diz respeito à uma opção.

A militância é o comprometimento, a decisão por levantar a voz seja sob o peso dos seus amores, seja sobre quaisquer outras coisas que nos afetem dessa maneira, essa decisão não é espontânea não é natural, ela parte de uma decisão. Eu acho que eu decidi naquele momento não baixar a cabeça, eu já tinha baixado a cabeça para muitas coisas. O teatro foi muito importante para mim nisso, a minha escola de formação política foi o teatro, isso na política institucional, pela briga, pela defesa da cultura, de acesso à cultura, e escola de formação política no sentido em defesa das liberdades individuais, dos direitos humanos, da comunidade LGBT, da população negra. Eu acho que eu poderia responder essa pergunta de muitas formas, mas talvez quando eu me percebi levantando a voz sob o peso dos meus amores, talvez ali tenha sido o começo dessa trajetória militante, a decisão tenha começado ali.

Jaírlos Marques: No último Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, você juntamente com outros manifestantes ocuparam o prédio do centro de referência Janaína Dutra. Eu gostaria que você, além de falar sobre esse ato histórico, já que foi a primeira vez que um movimento LGBTQIA+ ocupou um prédio público aqui, em Fortaleza, falasse do encontro de vocês com o prefeito José Sarto, que se comprometeu a retomar o funcionamento do centro. Eu queria saber se todas as pautas foram atendidas.

Ari Areia: Foi histórico de fato, primeira vez que o movimento LGBT ocupou um prédio na cidade de Fortaleza, um prédio público, eu fiquei muito feliz de ter podido viver esse momento com companheiros e companheiras de luta, é sempre uma escola, uma formação de muito aprendizado, de muita trocas, momento de ações diretas no movimento social, e dá para o movimento LGBT uma compreensão de movimento social. Não existe um movimento LGBT, não existe um bloco, não é algo homogêneo, é muito disperso, e muitas vezes politicamente disperso, na hora que nós propomos uma ocupação, que é uma ação direta incrível que aglutina alguns indivíduos em torno de uma compreensão política do que estamos fazendo, do que estamos lutando. Foi uma ocupação vitoriosa, nós conseguimos que o Prefeito nos recebesse, ele se comprometeu a executar orçamento. Isso é uma coisa que a gente vai precisar ver no final ano para saber se ele executou mesmo, se ele executar qualquer coisa já vai ter sido uma vitória, porque desde de 2018 que a prefeitura não executa nada. Então é muito grave, é uma negligência com as nossas vidas indizível. Fortaleza é a cidade brasileira que mais mata LGBTs no mundo, eu digo isso porque se o Brasil é o país que mais mata LGBTs e Fortaleza é a cidade que mais mata LGBTs no Brasil. Então Fortaleza é a cidade no mundo em que a violência é letal contra LGBTs é mais violenta e mais mortal. A estrutura do centro de referência é muito precarizada, o que eu tive de retorno agora esse mês é que as contratações estão caminhando. O processo de eleição do conselho municipal LGBT também está caminhando e a gente vai acompanhando, não tem como esperar muito de uma gestão que visivelmente faz opções políticas pelo descaso e pela negligência. As expectativas são baixíssimas. Mas eu acho que a gente cumpre o papel, a gente tencionar com o gestor, fazer ele parar a agenda e ouvir, eu acho que a gente cumpri um papel, e assim eu acho que o que é mais grave dessa circunstância é porque eles param para ouvir simpaticamente, eles param para ouvir receptivamente. Talvez se eles fossem declaradamente mais agressivos e violentos, a gente não desarmasse. A sensação que dá é que vai resolver e sensação que tenho é que não vai, mas como foi feito o compromisso, a gente vai esperar e aí também se não resolver a gente faz outra ação, uma denúncia internacional, no momento a preocupação está sendo com a política de governo do estado, que é muito semelhante, o governador anunciou que vai inaugurar um centro de referência, mas em Fortaleza, o que para a gente é um pouco complexo porque os casos pelo interior do estado são muito graves também. O Cariri nos últimos sete meses aliás nos últimos 60 dias matou mais de sete ou oito pessoas de forma violenta, sobretudo mulheres trans. E aí o centro de referência vai ser em Fortaleza, mais um em Fortaleza. Não há execução orçamentária e não há a sinalização de que o estado tem algum tipo de preocupação com as nossas vidas. São violências, são ciclos de violências que são previsíveis, o Ceará está pelo menos há sete anos, oito anos como um dos cinco estados mais violentos com LGBTs. Ano que vem vai ser também, então se você sabe que você está em uma linha de violência semelhante a essa e você não faz nada para interditar isso, para interromper isso, você é conivente com essa violência, essas são as nossas denúncias. Mas a importância da ocupação, Jaírlos, eu acho que ela está no campo simbólico para além da ação direta, além de sentar com o prefeito, acho que a importância da ocupação ela está, em estarmos vivendo a pior pandemia dos últimos cem anos, a gente paralisou completamente a gente estava sem saber para onde ir e ano passado a gente não conseguiu vislumbrar por onde ir e agora a gente conseguiu ocupar um prédio público, conseguimos canalizar a atenção do poder público ao problema. Poxa parece que a gente está conseguindo de alguma forma apontar caminhos. Eu acho que as coisas ficam muito complexas quando a gente se dispõe a apenas esperar o tempo histórico das coisas, porque eu estou dizendo isso, o Drummond tem um poema “Tempo partido”, ele fala assim “As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas. Mas eu não sou as coisas e me revolto”. Eu acho que hoje a gente tem que ter uma paciência histórica, senão a gente pira, não vamos resolver as coisas imediatamente. Então paciência histórica é fundamental, “As coisas talvez melhorem. São fortes as coisas”.

Elas insistem em melhorar, mas enquanto isso sabe, a gente tem que se revoltar. E aí a gente perde a capacidade de se revoltar, eu acho que a depressão sobretudo a depressão coletiva ela é um projeto, um projeto econômico, político, é um projeto educacional sabe.

A gente adoece na universidade, a gente adoece por não conseguir entrar em uma universidade, adoece na pós graduação. Então quando a gente adoece dessa forma as nossas capacidades de reação e revolta elas são minadas, sabe uma cidade triste ela não se move, não reage. E aí quando o Bolsonaro ganhou a última eleição presidencial. Eu lembro que eu falei assim “eles não podem tirar a capacidade de se indignar e nossa disposição de festa”. Eu acho que a pandemia roubou da gente inclusive nesse sentido e os movimentos sociais conseguirem reagir de alguma forma propondo uma ação direta como essa, ocupação, uma ocupação, o movimento não tem essa cultura de ocupar, não tem essa cultura de botar fogo em pneu, não tem a cultura de fechar BR, é muito importante. Eu acho que mais, mas até o se o prefeito não tivesse recebido, ainda assim teria sido vitorioso. Eu acho estranho quando o gestor cede para 100% de uma pauta, nossa tem alguma coisa de errada aí, (risos) estou brincando, é uma sinalização importante dele ter cedido, foi uma pauta objetiva, as pessoas tinham sessenta pontos de pautas, gente vamos resumir a três que é mais fácil a gente sair daqui logo e sair daqui e sair bem sucedido. Para além disso, sabe, Jaírlos, é um recado que fica, a gente ocupou, a gente pode ocupar de novo. A gente pode tomar o palácio, a gente pode tocar fogo em frente de alguma coisa. Incendiar.

Jaírlos Marques: Recentemente, a Secretaria de Cultura do Ceará cancelou três editais após uma resolução do Tribunal de Contas do Estado (TCE), gerando ainda mais insegurança para um setor que já se encontra em um contexto de vulnerabilidade acentuada. Essa decisão do TCE, ela pode ser questionada, mas ao que tudo indica, a Secult não pretende recorrer. Você, como artista, pode explicar para quem está acompanhando a nossa entrevista como isso afeta não somente os proponentes dos editais cancelados, mas também todo o setor cultural?

Ari Areia: O setor cultural é um setor da classe trabalhadora brasileira considerável. Eu não estou com os dados ao certo, certeiros na minha cabeça, mas isso é coisa fácil de achar. Tem um comparativo que eu gosto de fazer porque dá para ter uma visualização bem interessante de como o setor cultural impacta a economia brasileira. O comparativo entre a indústria do turismo e a indústria audiovisual brasileira, comparando essas duas indústrias, o cinema, que é o audiovisual brasileiro, ele impacta no PIB nacional mais do que o turismo. Então veja, essa informação, falando do cinema, que é uma das mais de 16 linguagens artísticas. Essa comparação objetiva de dados coloca para a gente que arte e cultura não são simplesmente um floreio, um detalhe decorativo dentro da gestão da administração de um país. É um setor econômico, existe uma economia da cultura, economia criativa, uma economia solidária que precisa ser entendida e compreendida como emprego, como trabalho, como renda. Então, assim, quando o governo federal vem desmontando a política audiovisual e a política de cultura do país, ele está desmontando um setor que emprega muita gente, que traz um impacto para o PIB brasileiro que é considerável. A gente não tá falando de uma coisa que dá prejuízo, que traz um impacto positivo no PIB mais do que o próprio turismo (e) turismo é o carro-chefe no Brasil, né? E […] em termos de emprego e de renda, são mais de cinco milhões de pessoas empregadas no Brasil, na indústria da cultura, no setor cultural. Esses editais que foram suspensos pelo TCE, a partir de uma orientação do TCE, iriam beneficiar diretamente 300 projetos. Provavelmente, sei lá, 2 mil pessoas empregadas diretamente (e) cerca de 5 mil pessoas de forma indireta. Eu estou falando de pessoas que iriam sentir o impacto desses quase 16 milhões de reais que foram sustados. Mas, para além disso, além desse impacto direto em quem iria movimentar esse recurso e o que esse recurso iria movimentar no estado do Ceará, a gente está falando aí da negação do acesso a bens culturais produzidos por esses 300 projetos que beneficiariam pelo menos 200 mil pessoas […] eu faço questão de fazer esse desenho, Jaírlos, porque é importante a gente pensar a cultura como trabalho. E a cultura é trabalho, é emprego, é renda. E é importante a gente ter a dimensão da cultura como direito. Porque quando a gente defende o orçamento para a cultura, a gente não está falando do Ari que precisa do dinheiro do edital ou da Silvia More que precisa do dinheiro do cachê; a gente tá falando de um direito constitucional que deveria ser garantido o acesso dele a todo e qualquer brasileiro e ele é negado historicamente, sabe? A pessoa tem uma dimensão de que a cultura, ela está restrita ao aspecto do direito privado, né, “ah, se eu quero ler em um livro, eu vou lá e compro; se eu quero ver um filme, eu vou lá e pago pelo ingresso; se eu quero assistir um show, eu vou lá e pago pelo ingresso, ver um espetáculo de teatro”. A gente naturalizou a cultura dentro desse aspecto do direito privado, mas a gente esquece de que toda e qualquer pessoa quisesse acessar a literatura, o cinema, o audiovisual, a música, o teatro, a dança, o que quer que seja… as artes visuais. Ela deveria ter, perto da casa dela, acessível, (o) equipamento. Porque o acesso à cultura é um direito constitucional, garantido pela Constituição de 88 e que é negligenciado. A gente está falando de uma capital como Fortaleza, mas imagine isso nos rincões do Brasil. Os rincões do Brasil, sabe? Tem gente que nunca foi ao Cinema, tem gente que nunca foi ao teatro, nunca viu um espetáculo de dança. E essas pessoas deveriam ter acesso a isso. Assim como a gente defende o acesso universal à saúde, à educação, à moradia, a gente defende o acesso universal à cultura. E não apenas a fruição cultural, mas a possibilidade das pessoas fazerem, criarem. Porque roubar de um povo a possibilidade de criação, de imaginação, é também roubar seu futuro. E aí, assim, sobre essa questão específica dos três editais que foram suspensos, existem compreensões da burocracia que não podem ser “o control c e o control v” dentro da administração pública. Você não pode tratar um edital de cultura como se trata um edital de licitação pública de uma empreiteira, por exemplo. Não estou falando aqui da lisura do processo, da transparência do processo, não estou falando aqui da responsabilidade fiscal que os processos têm que ter. Isso aí é como todo e qualquer processo de movimentação de dinheiro público. Eu estou falando que montar um espetáculo de teatro e de dança é diferente de construir uma unidade de saúde. Então, como que o Tribunal de Contas do Estado vai considerar inconstitucional ou vai considerar irregular, a contratação de uma pessoa física se a imensa maioria das pessoas que trabalham com arte e cultura não são uma empresa, elas não são uma produtora? Eu estou falando do lugar do teatro, em que a maioria dos grupos hoje tem CNPJ, que o MEI, mas a determinação do TCE fala que tem que ser inclusive um CNPJ sem fins lucrativos e isso é custo enorme para as pessoas, manter um CNPJ. Não faz o menor sentido. A gente está entrando… a polêmica foi em torno disso e a gente está tentando fazer aí alguns tensionamentos tanto com o TCE quanto com a Assembleia Legislativa e fazendo um diálogo com o governador por meio da Secult, para ver se a gente consegue encontrar um caminho, encontrar uma outra compreensão sobre essas legislações que estão sendo tocadas e argumentadas para ver se essa decisão é possível, é passível de ser revista, porque esse edital que foi suspenso, edital das artes por exemplo, é de 2019. O último edital que tinha sido executado pela Secult foi em 2016. Então, gente, é muito tempo sem um edital. E, assim, esses projetos, pelo menos os dois desses editais, os três que foram cancelados, dois deles já tinham saído o resultado. Então as pessoas já tinham programado o seu… a sua execução de projeto a partir disso. Então é muito complexo, é muito complexo! A gente está lutando para ver os caminhos possíveis de reversão disso, não sei se é possível porque é a decisão de um tribunal. Se nós formos recebidos pela presença do Tribunal de Contas do Estado, que eu acho que é isso que vai acontecer, também vai ser uma coisa histórica, né, porque acho que nunca um movimento de cultura sentou para conversar com o presidente da Secult. E a gente está pleiteando uma audiência com o governador. Não é fácil, não consigo te dizer “vai dar certo”. Não consigo dar essa sinalização, mas vamos tentar, né?

Carolina Galvão: Além da sua formação em Jornalismo, você também passou por várias áreas do teatro. Trabalhou como ator, até no cinema e, assim, o Jornalismo, o teatro, a política, são três áreas bem importantes na sua vida. E como você disse, apesar de ter passado tanto tempo no teatro, você é mais conhecido pela sua atuação política. E aí, eu queria saber como você chegou até o Psol? Como foi a escolha desse partido? Por que escolheu ele e não outro?

Ari Areia: Foi Jornalismo também. Eu estava no primeiro semestre e aí eram cadeiras mais teóricas, introdução à Filosofia, aquela coisa… aí falei assim “eu quero fazer alguma coisa”. Aí eu comecei a fazer… gente, dez anos atrás a rede social onde a gente fazia lives era o Twitter […] Na época era twitcam. E aí, nesse meu primeiro semestre, eu resolvi fazer lives no Twitter e aí eu lembro que eu entrevistava tanta gente. Entrevistava (gente) do cinema, do teatro, da literatura. Aí eu lembro que a vereadora Antônia Rocha do Psol, ela tinha sido a única vereadora a votar contra o aumento do salário dos vereadores. Falei “gente, quero conversar com essa mulher, quero entrevistar essa mulher”. Aí entrevistei a Toinha, aí depois entrevistei o João Alfredo e eles gostaram muito desse rolê. “Ah! A gente precisa de uma pessoa e tal para ajudar nas redes”. Aí, eu acabei entrando na assessoria como estagiário, logo meu primeiro estágio como jornalista foi nos mandatos do João e da Toinha. Gente, eu, observando a atuação do João Alfredo e da Toinha Rocha na Câmara Municipal, fiquei encantado por aquilo. Eu falei assim: eu quero andar com essas pessoas, eu quero fazer parte disso. A ocupação do Cocó, os enfrentamentos, os embates… eu era evangélico ainda, na época, ainda estava na igreja, era pregador, aquela coisa toda. Mas, apesar de ser evangélico, filho de pastor da Assembleia de Deus, a minha família sempre votou na esquerda. Então, esse meu tio, que era do teatro e também era militante comunista, socialista, ele sempre influenciou positivamente a família em torno desse pensamento, dessa opção política pela esquerda e na época, a gente tinha uma gestão municipal que era do PT, era a Luizianne Lins e o Psol era uma oposição ao PT, à esquerda. Eu achava o máximo aquilo. Eu falei assim: não, eu quero estar junto com essa galera. E aí eu me filiei ao Psol em 2011, por que me encantei mesmo. Me encantei com os debates, com as leituras, fiz a participação em rodas de formação política. Foi um amor à primeira vista, eu gamei no Psol. Nunca tinha passado pela minha cabeça me candidatar, em 2016, inclusive, foi uma dificuldade. E aí eu só topei me candidatar porque a ideia era fazer uma candidatura performance. Por que eu decidi me candidatar, né? Eu estava na rádio universitária, eu tinha sido estagiário da rádio universitária um tempo, mas nesse dia eu voltei como entrevistado na Rádio Debate. Para mim foi o máximo, tipo assim “meu Deus do céu, eu sou só um jovenzinho e estou aqui na Rádio Debate, um dos mais respeitados espaços no rádio jornalismo do estado, na Rádio Universitária”. E era um debate sobre ‘Histórias Compartilhadas’, a peça polêmica, com a deputada Silvana. Foi uma das maiores audiências da Rádio Debate, o telefone não parou um segundo, foi uma loucura. Tinha gente na porta da rádio. E, nesse debate, a deputada Silvana tinha apresentado um projeto de lei de censura e era sobre isso. Eu fui rebater, citei o código penal, citei a Constituição, citei tudo enquanto de várias legislações e ela não tinha o que dizer. Ela ficou assim: é, mas eu sou a deputada e eu faço as leis. Aí eu respondi a verdade: você tem toda razão. Aí para dentro eu respondi “então, me aguarde”. Então, foi aí que eu decidi me candidatar. Assim, de fato ela é a deputada, ela faz as leis, então para… não vai adiantar nada, eu dizer o que eu estou dizendo, eu argumentar o que estou argumentando; ela está respondendo verde. Então, eu preciso falar também e aí eu comecei a trilhar esse caminho, sabe? A história de candidatura veio daí. Foi uma coisa meio inconsequente? Foi. Foi uma coisa meio despretensiosa? Foi. Só que as pessoas levaram a sério. Não que eu não tenha levado, eu levei muito a sério, fiz campanha, de sol a sol, muito esforçado. Foi legal, gostei, mas em 2018 foi quando eu percebi que aquilo tinha impactado no imaginário, sobretudo dos LGBTs de uma forma que eu não tinha dimensão. Eu fui para Sobral no começo do ano e era um pré-carnaval — adoro. Uma pessoa me parou no meio desse pré-carnaval e falou assim: Você é o Ari, né? Você me representa. Eu falei “meu Deus do céu, o que é que eu represento para essa pessoa, tipo, na região norte do estado, eu me candidatei em Fortaleza, o que é que eu represento?”. E aí eu fui para Quixadá, alguns meses depois, e grupo de LGBTs, uns quatro LGBTs, me parou… era um festival de cinema da diversidade, aí eles me pararam e falaram assim “Você é o Ari Areia, né?”, falei “sou”. “A gente quer trabalhar na sua campanha”. Eu falei: gente do céu, então vai ter que ter uma campanha. Eu não sei, a gente não se conhece, essas pessoas estão vindo falar comigo e [querem] trabalhar em uma campanha, então vai ter que ter uma campanha”.

Acho que 2018 foi uma necessidade de dar respostas a um sentimento que eu provoquei nas pessoas, acho que eu joguei uma pedra na água, essas ondas reverberaram e eu tinha que dar resposta a isso.

2020 foi uma coisa mais projetada, mais programada, mais consciente, mais ‘tá, vamos lá cumprir essa tarefa’. Eu acho que o resumo dessa história política foi mais ou menos isso. O Psol conseguiu me encantar, talvez eu hoje cumpra um pouco esse papel de encantar as pessoas em torno do Psol. Tem muita gente que vem se filiar e me procura, “olha, eu quero me filiar”, eu vou, faço a apresentação. Eu acho legal esse ciclo, eu espero que daqui a algum tempo, quando eu já tenha me cansado e ache que está ‘ok’ para eu ficar nessa rede, bem mais tranquilo, eu espero poder ouvir testemunhos bonitos de pessoas que talvez tenham se encantado a partir dessas minhas provocações, que estejam tocando essa missão de provocar outras bagunças nessa água para encantar outras pessoas e assim, o ciclo seguir. Eu acho que foi mais ou menos isso.

Jaírlos Marques: Ari, agora em 2021, dois grandes nomes deixaram o Psol, não é? Jean Wyllys, que foi pro PT, e Marcelo Freixo, que agora é filiado ao PSB. Eu queria saber como você analisa a saída desses nomes, que já tiveram as imagens tão ligadas ao partido; e você, que falou agora sobre o seu amor pelo Psol nesses dez anos. Você já pensou em trocar de partido?

Ari Areia: Os partidos, assim como todos os aglomerados humanos, todos os coletivos humanos, eles são problemáticos, né? Assim, o Psol não é bem feito e ele nem será. Acho que nem é essa meta, né? Eu não consigo me enxergar hoje em um outro lugar, que não seja o Psol. Eu não consigo imaginar a minha trajetória, a minha história, em outro lugar que não seja o Psol. Não que esse seja o pensamento acertado, (de que) só o Psol acerta, só o Psol tem possibilidades e caminhos. Acho que pela trajetória do Psol, pela responsabilidade com que o Psol trata a ocupação dos espaços institucionais e pela coerência do Psol, apesar de tudo, eu não consigo me enxergar em outro lugar, que não seja o Psol.

Então assim, se em algum momento passou pela minha cabeça não estar no Psol, foi no sentido de tá, Ari, você teve uma trajetória na igreja, uma trajetória longa também, de dezoito anos de vida, aí você teve uma trajetória no teatro, que eu não posso dar ela como encerrada mas eu considero ela hoje de uma forma um pouco mais amena o que a política. E hoje essa trajetória política, um pouco mais proeminente. Talvez, o que tenha passado pela minha cabeça foi assim: Será que eu quero, hoje, largar tudo isso aqui e sei lá, me mudar pra cima de uma serra ou ir pro sertão, sabe? (E) fazer outra coisa? Talvez tenha passado pela minha cabeça algo desse tipo porque é uma coisa que passa pela minha cabeça sempre. Eu vou sempre criando círculos novos, eu tô sempre jogando as coisas para cima de alguma forma e começando elas do zero. Eu acho que talvez seja de mim essas coisas, eu começo, as coisas se estabelecem e eu sigo outros caminhos. Eu olho para essa opção, tanto para Marcelo Freixo quanto pro Jean e eu sempre tive respeito, na medida do possível, mas as trajetórias deles, de alguma forma, diferentes de trajetórias de pessoas como a Luciana Genro, como a do próprio Renato Rosena, a Sâmia Bomfim, Ivan Valente… são trajetórias um pouco mais “pessoalizadas”, né? Se você parar para pensar, inclusive em algum momento o Freixo ou o Jean chegaram a votar fora de compreensões que eram compactuadas do partido. O Jean tinha posições que, às vezes, eram mais pessoais e desagradava a militância do Psol, né? Assim, com relação a posições relativas a Israel… enfim, outras posições. O Freixo, em alguma medida dessa pauta da segurança, chegou a ter votos que foram um pouco polêmicos. Não tô aqui fazendo nenhum tipo de retratação da figura das imagens deles. Eu tô falando que talvez, observando o caminho deles, isso fosse, de alguma forma, compreensível. Eu acho que as pessoas, elas vão medindo e avaliando os percursos e as estratégias. Eu penso muito, Jaírlos, na história que eu tô escrevendo, naquilo que vão contar sobre mim. (E) algumas táticas, algumas estratégias são de fato mais eficiente para que você chegue mais rápido a alguns objetivos, né? Mas é sempre importante pesar “o que isso traz junto?”, “quais são os ganhos e quais são as perdas?”. Dentro do respeito que eu tenho a esses camaradas e a outras pessoas também, que tem deixado o partido, eu comentei recente em um debate interno do Psol do Ceará que algumas flexibilizações talvez não caibam no Psol e aí nesse algumas pessoas podem ir pro PSB, podem ir pro PT, onde algumas flexibilizações são mais viáveis de serem tocadas. E quando eu falo sobre isso não é no sentido da gente tá fechado de tal modo que a gente não consiga ter responsabilidades históricas, né? O Psol fez oposição à esquerda aos do governo do PT, né? Isso que me encantou no Psol Fortaleza, que me fez chegar no Psol. Eu já tinha tido embates na cultura com o governo Luizianne, né? Por conta das irresponsabilidades, das negligências, então eu vi muita coerência naquela posição a esquerda que o Psol fazia na Câmara Municipal. Então a gente fez oposição aos governos do PT na presidência da república e era uma oposição a esquerda muito dura, inclusive foi por conta disso que o Psol surgiu, né? Mas era o Psol estava na rua com o PT contra o impeachment, denunciando as arbitrariedades da Lava Jato e em defesa do Lula contra aquela prisão, que era uma prisão injusta e arbitrária. Apesar dessa compreensão radical, com um programa comprometido com as lutas, que não faz muitas contrações nesse sentido, o Psol não tem errado dentro dessa responsabilidade histórica. Eu sou procurado para conversar com pessoas de outros campos, né? E as pessoas falam: “Olha, se você tivesse no canto tal, talvez você já tivesse sido eleito”, “você teve mais votos do que o último vereador que entrou no partido tal”. E eu digo: “É, tive”. Mas eu penso na biografia, sabe?

Jaírlos Marques: O partido adiou para o ano que vem a decisão de lançar uma candidatura própria à presidência em 2022, não é? Apesar do deputado federal Glauber Braga já se declarar um pré-candidato, ainda existe também a possibilidade do Psol se juntar à frente ampla de Esquerda e apoiar a candidatura do ex-presidente Lula. Qual a sua opinião sobre isso? Você apoia o lançamento de uma candidatura própria do Psol ou uma frente ampla em torno do ex-presidente Lula?

Ari Areia: Essa é uma pergunta supercomplexa porque ela envolve uma observação responsável da conjuntura, né? Então, vejam, há seis, sete meses atrás, a gente tinha um cenário em que o bolsonarismo estava numa alta de popularidade, a gente tinha pesquisas eleitorais que apontavam a possibilidade de Bolsonaro ganhar no primeiro turno. Então, diante de um cenário como esse, é óbvio que a gente precisa ser objetivo. É o Ciro que tá na frente? É o Lula que tá na frente? Quem tá na frente? Então vamos conversar. “Olha, para gente o programa tem que ser esse, a gente não abre mão disso. Como é que a gente consegue juntar todo mundo?” Eu acho que a gente tem que ser responsável nesse sentido. Qual é o cenário hoje? A gente tem o bolsonarismo derretendo. Não estão dizendo que o Bolsonaro está morto. Eu não tô dizendo eu não tô dizendo que a coisa tá resolvida, mas em termos numéricos, objetivos, a gente tem o bolsonarismo em declínio. Nas pesquisas, a gente tem aí o Lula pontuando muito positivamente, inclusive com a possibilidade de um primeiro turno com bastante sucesso. Então, nesse cenário, o tabuleiro muda e a gente tem, além da tarefa de derrotar o Bolsonaro, algumas outras tarefas como objetivos. Eu tenho dito muito isso nas minhas falas recentes: a questão não é derrotar o Bolsonaro, é um combate constante até derrotar o bolsonarismo se espalha para além desse epicentro que é o Bolsonaro. Então, para derrotar o bolsonarismo, o Psol tem uma tarefa estratégica, uma tarefa grande. As eleições para a gente não se resumem à tarefa objetiva de eleger pessoas. Óbvio, o Psol é um partido que disputa eleições e leva a sério a disputa da eleição. Mas, além disso, eu queria começar por aqui, a gente compreende as eleições como um instrumento importante de focalização do nosso programa, dos nossos debates, de convocação das pessoas e de organização delas. Então, para gente, disputar e se apresentar numa eleição, sobretudo na presidencial, que é a de maior impacto, tem um efeito. O Psol é o partido que mais cresce, né? Foi o partido que mais cresceu no último ciclo e isso é resultado das últimas campanhas, (da) Luciana Genro, do Guilherme Boulos. Então, assim, pra nós, além da questão objetiva das eleições terem o resultado prático de eleger indivíduos e vozes públicas, a gente entende a eleição com este instrumento de organização. Então, pra gente, se apresentar é fundamental. Para mim, o Psol precisa sempre se apresentar. Em segunda questão, nós temos uma tarefa objetiva que é: a nível federal, o Psol, assim como todos os partidos, precisam bater uma cláusula de barreira, que é uma porcentagem do total de votos do país para que ele continue tendo vida política ativa, para que ele continue tendo vida política. Alguns partidos, no ciclo passado, não bateram essa cláusula. O PCdoB, a Rede, o PBL, esses partidos praticamente pararam de existir. Eles não têm acesso a uma estrutura mínima que permita que os partidos se movimentem, né? Então, assim, essa foi uma mudança de reforma política, que o Eduardo Cunha propôs, que veio para tentar minar esses partidos pequenos e o Psol obviamente está na mira disso. O Psol não é como o PT, que tem uma bancada enorme de deputados federais, mas a gente conseguiu bater a cláusula de barreira. Se a gente não tivesse tido uma campanha presidencial tão boa como a gente teve na eleição passada, talvez a gente não tivesse chegado lá. Foi uma campanha que empolgou, embora não tenha sido numericamente, em votos, uma campanha expressiva, foi uma campanha importante. Então, por que eu defendo a candidatura própria, e aí eu saúdo o nome do meu amigo Glauber Braga que tem corajosamente se disposto, a ser nosso representante em 2022? Porque a gente precisa bater a cláusula de barreira, a gente precisa manter e ampliar a nossa bancada na Câmara Federal e vai ser muito difícil. Então, se o Psol tiver uma candidatura própria, empolgante, como a gente tem tido nos últimos anos, nos últimos pleitos, essa tarefa fica mais fácil. Por que eu tô dizendo isso? O Psol teve candidatura própria. O debate de alguns setores internos do Psol era de que não devia ter, a gente devia somar com o PT, juntar com a Luizianne e tal. Eu acho que teria sido um erro porque corria os riscos da gente não conseguir voltar para Câmara Municipal e isso é um desastre. Teve a candidatura, Renato [Roseno] foi o candidato, foi muito bacana, numericamente não foi excepcional, mas a votação foi importante e a gente voltou com duas cadeiras na Câmara Municipal. Então foi fundamental. Então, a preço de hoje, eu defendo que o Psol e o grupo político que eu componho, que é o movimento socialista, uma corrente externa do Psol, a gente defende a candidatura própria e o nome do Glauber [Braga]. Assim, eu não sei se ficou confuso, mas basicamente tem duas dimensões, essa minha essa minha avaliação. A primeira é a candidatura como instrumento de organização, de convocação, mobilização e a organização das pessoas, porque derrotar o bolsonarismo não é eleger pessoas, é a gente conseguir trazer e mobilizar gente em torno do que a gente acredita, e em segundo lugar a tarefa objetiva. E é óbvio, né? Se daqui a seis meses, o Bolsonaro dá um uma reviravolta e de repente não tem outro jeito, gata, vamos sentar aqui pra conversar sobre como é que a gente vai fazer, sabe? Essa responsabilidade, eu não tenho medo algum de dizer, o Psol não vai ser irresponsável dentro da tarefa principal que é derrotar o Bolsonaro.

Jaírlos Marques: Nós estamos aqui nos encaminhando para o final da entrevista e, antes de te fazer a última pergunta, já quero te agradecer por ter aceitado o nosso convite. Muito obrigado, nós sabemos o quanto a sua agenda é apertada. Amanhã mesmo, dia 24 de julho, você já tem mais um compromisso, que é o ato Fora Bolsonaro. Mas, antes disso, no ato anterior, alguns dias antes, um meme seu viralizou. Na imagem, você estava em um aplicativo de relacionamento, né, convidando as pessoas para irem à manifestação. Era uma montagem ou você está realmente empenhado em realizar todo esse trabalho de base? E quais suas expectativas para o ato de amanhã também?

Ari Areia: Não, gente, não era montagem, eu tava lá, inclusive eu desinstalei esses dias o aplicativo, mas a gente pode se encontrar em outros aplicativos, eu tô no Instagram, eu não tô no Tinder porque não tenho paciência, mas eu tava lá. O Tinder, gente, é um espaço muito esquisito, né? Eu não tenho muita paciência e eventualmente não rola muito assim, as coisas não acontecem de forma efetiva e prática, né? Eu não sei se é só comigo. No começo, eu não botava a foto do rosto, eu colocava assim, só da boquinha pra baixo. Aí, quando a pessoa pedia uma foto de rosto, eu mandava. Aí a pessoa me bloqueava e eu pensava: “Nossa…”. Então agora eu coloco logo a foto do rosto, porque daí, se for pra pessoa bloquear, ela já bloqueia logo, né? Já dou essa opção de cara. E aí aconteceu uma coisa muito engraçada. Já disse que uma pessoa veio e falou assim: “Você não tem vergonha, não?” Ela falou assim, e eu pensei, gente, mas vergonha de quê? E ela disse: “De estar aqui usando a foto do Ari”. Aí eu falei: “Não, mas eu sou o Ari!”. E a pessoa disse: “Eu vou denunciar você, eu vou contar pra ele”. Daí a pessoa veio no meu Instagram, falou assim: “Ari, estão usando a sua foto!”. Gente, eu não tive coragem de responder. Olhei e pensei assim: “Não vou ter coragem de responder”. Mas achei engraçado. E aí, quando eu usei o aplicativo para movimentar em torno do Fora Bolsonaro, foi porque eu postei uma foto no Instagram, que tem até um pixo, uma pixação lá no centro, eu acho que é na Rua São Paulo, que dizia: “Fogo no Bolsonaro”. Aí eu fiz uma foto, que sou eu sentadinho no chão, e “fogo no Bolsonaro” em uma parede amarela, bonita. A foto viralizou no Instagram, teve sei lá, 3 mil curtidas. O Instagram excluiu a foto porque violava os termos de uso. Violava as normas de uso do aplicativo. Falei, gente, mas não tem nudez, não tem nada, tem “fogo no Bolsonaro”. Incitação à violência, mas é uma violência… Né? Eu peguei e botei no Tinder essa foto. Falei: “Não, essa rede social permite”. E ele aceitou e ficou a foto, sabe? Eu falei, nossa, esse espaço é muito mais passível de levantar debates do que no Instagram, porque, poxa, o Instagram censurou uma foto que tinha “fogo no Bolsonaro”. E aí umas quatro ou cinco pessoas vieram falar comigo muito indignadas, sabe? “Política aqui?”. Eu achei aquilo tão genial, assim, eu perguntei: “Mas você é bolsonarista?”. E a pessoa respondi: “Eu votei nele!”. Eu falei assim: “Mas eu não tô acreditando, a bicha é bolsonarista”. Então eu peguei esse gancho e comecei a mobilizar, sabe? Eu mudei minha descrição. Tem umas coisas muito clichês no Tinder que é assim: “Sem foto de rosto, sem papo”. Então eu botei assim: “Se você não for bolsonarista, a gente começa a conversar, não precisa nem ter foto de rosto”. Essas coisas, meio bobas, mas que eu percebi que estimulava mais do que a própria coisa do sexo por sexo, de estar buscando sexo fácil e tal. E, assim, as pessoas já não falavam muito comigo pra provocar essa coisa do sexo. Porque é um aplicativo de pegação, mas eu percebi que existe uma coisa… Eu posso mandar uns prints depois, assim, pra você ver e não achar que é viagem que eu tô inventando. “Ah, eu acho que você é o máximo!”, e fica por aquilo. Mas e aí? Você não vai nem pedir um nude, você não vai? Acho que tem uma ideia, uma imagem que gera um distanciamento, que eu acho que é assim, é muito da política. O teatro, nele eu apareço nu no palco, são sempre ou no palco ou na tela, né? Então, a sensação que eu acho que dá nas pessoas é de que aquele corpo é um corpo público e é um corpo público de alguma forma acessível, né? Na política, uma sensação que eu tenho é de que ela traz barreiras e que, apesar de você estar em espaços que disponibilizam esse acesso, como o Tinder, tem uma parede ali, sabe? As pessoas não encostam. E eu acho, às vezes, que as pessoas têm um pouco de medo de mim. Eu acho que eu provoco um pouco de medo, sabe? E eu gosto muito, assim, eu acabo me permitindo um pouco mais quando eu percebo que não tem esse medo no olhar, não tem essa… Mas deu muito certo, as pessoas inclusive mandavam mensagens no Tinder falando: “Faz live do ato, vou acompanhar pelo seu Instagram”, “fui pro ato, mas não consegui te ver”, “te vi, mas não tive coragem de falar”. A pauta do meu Tinder, na época que eu tava com o Tinder, era o ato. Foi a última última semana que eu usei [o Tinder]. E eu acho que a gente precisa profanar, eu acho que talvez seja a forma mais feliz de encerrar esse nosso papo, é falar sobre profanações. A profanação é você deslocar algo que tá reservado e trazer aquilo para o toque de mãos que não tocariam facilmente ou cotidianamente aquela coisa, ou colocar na boca de alguém algo que estava reservado pra outras bocas, né? Isso foi uma metáfora péssima, porque [estamos] falando de Tinder. Mas eu tô falando de discursos, de debates, tá, Jairlos? Pelo amor de Deus, a Carol chega deu um sorriso constrangido. Desculpa, Carol. Então, assim o que eu tô querendo dizer, a política, na sua essência, está reservada a lugares aparentemente altos, né? Gabinetes e palácios. E eu acho que eu me meti nesse espaço, eu me meti nessa coisa pra tentar de alguma forma profanar a política, profanar a política no sentido mais profano, inclusive. Porque você não faz política no Grindr se você não quer profanar a política, né? Uma vez eu tava num pré-carnaval e aí uma senhora falou assim, isso antes da pandemia, claro: “Eu tô aqui contando, nesses últimos dois minutos, você já beijou cinco pessoas!”. Eu falei assim: “É, vai contando aí, que vai faltar dedos”. E alguém dizia assim: “Sei lá, você não tem uma preocupação, porque assim, você é um candidato e na próxima eleição você vai ser candidato…”.

Eu pensei assim: “Gente, mas eu não tô nesse espaço para me diferenciar das pessoas. Eu tô nesse espaço pra trazer essa coisa pra cá”.

Eu me lembro, sabe, quando eu me candidatei a primeira vez, que as pessoas diziam assim: “Mas você vai se candidatar, você vai ser um político, você vai se meter com política” e era estranho isso, né? Assim, eu vi isso porque era uma coisa meio negativa, era como se fosse uma coisa ruim. Da segunda vez já foi diferente, assim, as pessoas me encontravam, sei lá, num bar, e falavam assim, “eu votei em você”. Gente, isso pra mim era genial. Eu estar tomando uma cerveja, um litrão, sabe? No Pitombeira, no barzinho copo sujo, numa beira de esquina e passar uma pessoa e falar, eu votei em você, sabe? A pessoa que tá bebendo um “litrão”, no mesmo copo sujo que eu ou que tá no pré-carnaval, sabe? Com shortinho curto, com meia arrastão. Eu acho que isso faz parte da disputa de imaginário. Eu acho que a cidade tem que ser pensada pelos corpos que vivem a cidade, na sua profundidade. De alguma forma, isso é a cidade, sabe? Como que essa cidade está sendo governada por uma pessoa que nunca pulou na ponte velha do poço da draga? Como que esse Estado está sendo governado por uma pessoa que não sabe pegar o ônibus aqui no terminal da Parangaba e ir até o Lagoa e depois descer… Eu não decidi me candidatar ou eu não decidi permanecer nesse espaço para me distinguir de ninguém ou de nada, é o contrário. É profanação mesmo, assim, é pegar uma coisa que tá muito separada, tá assim reservada, santificado e trazer para lama assim, sabe? O pé no chão. Eu lembro que a primeira audiência que eu fui na Câmara Municipal foi com uma chinelinha. Era uma sessão solene, eu estava na mesa. Eu não tinha paletó, não tinha gravata, eu fui com uma blusinha de botão e uma chinelinha, e alguém falou assim, “você não veio de sapato, né?” Eu falei, “não, vim de chinelinha”. Eu achei bom assim, de alguma forma, sabe? Não é em sinal de desrespeito. Eu acho que tem que profanar, sabe? Eu acho que tem que baixar um pouco a bola daquele espaço. E aí tem essa coisa do Tinder, né. Não tem profanação maior do que aquilo, sabe? É o cinemão. Inclusive essa história da peça, da polêmica que foi o que me jogou na política, a deputada dizia assim, “é um absurdo vocês terem feito essa peça com dinheiro público!” Não tinha dinheiro público! Foi o meu TCC, então eu parcelei ele no meu cartão em cinco vezes, todo o gasto da peça, e como ela fez isso, que era um absurdo, a gente escreveu um projeto, que passou inclusive neste edital de 2016, que o título do projeto era Cinemão, que era uma pesquisa sobre cinema pornô, esse lugar da pegação, da putaria, era “Cinemão, Vai Rolar Putaria” porque a gente queria, a gente achava que era muito importante ter dinheiro público na execução de um projeto cultural que fosse Vai Rolar Putaria e até os os servidores da Secult ficavam tão distantes disso, toda vez que a gente ia lá fazer algum tipo de diligência ou algo do tipo, pra resolver, tinha a pergunta “qual o nome do projeto?” “é Cinemão Vai Rolar Putaria”. Porque… talvez, eu não sei onde que as coisas vão dar, mas se der para profaná-las e elas saírem afetadas de alguma forma disso tudo, pra mim já tá valendo.

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