A presença feminina de Fátima Porto à frente do Bar da Lions

Clara Klink
EntreFios - tecendo narrativas
20 min readDec 5, 2023

Com juba grisalha e sorriso cativante, a paraibana mostra como ter coragem de leoa para manter o estabelecimento por mais de duas décadas

Por Ana Alice Freire, Clara Klink, Grasieler Martins,
Gustavo Meneses, Isabella Pascoal, Jessica,
Xaio Lopes e Yasmin Louise

Fátima Porto Silva, proprietária do Bar Cultural Lions / EntreFios

Há mais de 20 anos, o coração do centro de Fortaleza pulsa no peito dessa paraibana que acredita já ter estado ali em outras encarnações. Maria de Fátima Porto Silva — mais conhecida na cidade como dona Fátima — lutou desde cedo para mudar a trajetória de sua família, até chegar à Praça dos Leões e renovar aquele espaço, marcado pela presença do Bar da Lions.

Nascida em Campina Grande, dona Fátima viveu uma temporada no Rio de Janeiro antes de seguir viagem rumo à capital cearense. Ao envolver-se com Eufrásio em uma festa carioca, ela já sentia no primeiro contato com seu futuro marido as luzes de um espaço que ainda haveria de conhecer.

Nos anos 1990, o casal regressou à cidade natal de dona Fátima. Durante o percurso do Rio para Campina Grande, seu esposo foi assaltado, e os dois se viram na dependência financeira da avó dela. Nesse período, um novo membro era agregado à família: seu filho David, nascido em 1991.

Mesmo em meio a conflitos familiares e com apenas duas horas de descanso permitidas em meio à correria, o casal conseguiu manter dois restaurantes em Campina Grande. O sonho começou a ganhar forma quando Eufrásio, esposo de Fátima, decidiu embarcar em uma viagem de ônibus para Fortaleza.

Na capital cearense, conheceu o Bar do Carioca, localizado na Praça dos Leões, que, à época, era carente de iluminação pública e de limpeza urbana.

Ao retornar para Campina Grande, Eufrásio estimulou Fátima com a ideia de abrir um restaurante no centro de Fortaleza. Em meio às dificuldades financeiras, ela concordou em vender o sítio do casal para viabilizar o aluguel do estabelecimento que viria a se tornar o Bar da Lions.

A decisão não apenas marcou o início de uma nova empreitada, mas também contribuiu para a transformação da Praça dos Leões em um local vibrante e movimentado em meio ao Centro de Fortaleza nos anos 2000.

As mudanças efetivas começaram quatro anos após o estabelecimento deixar de ser Bar do Carioca e se transformar em Bar da Lions, ainda que enfrentasse conflitos e advertências constantes da prefeitura. Tudo isso enquanto moravam no próprio bar. Os desafios iniciais não apenas testaram a determinação do casal para se manter ali, como também consolidaram a reputação do local como um ponto de referência na vida noturna de Fortaleza.

Em entrevista ao EntreFios em 21 de novembro de 2023, Fátima Porto relembra a história e o funcionamento do bar que busca acolher todos e reflete sobre a coragem de leoa necessária às mães e empreendedoras, feito ela.

Confira a entrevista, em vídeo e transcrita na íntegra, a seguir.

Yasmin Louise: A senhora nasceu em Campina Grande, passou uma temporada no Rio de Janeiro, retornou à Paraíba e depois veio morar aqui, no Ceará. A gente gostaria de saber o que te motivou a sair de onde nasceu?

Dona Fátima: Bem, no nosso ramo, que era restaurante, a gente tinha uma casa que funcionava o restaurante, de sociedade com um irmão. Só que na época a situação financeira ficou muito fraca porque nos movimentos da época, tava muito fraco nesse ramo. Então a gente veio passear aqui, e quando chegamos aqui a gente se apaixonou por Fortaleza. A gente achou o lugar que fomos passear, que foi lá no Centro, na Praça dos Leões, aí o meu marido se apaixonou por aquele local que tá com a gente até hoje. Aí a gente foi e botou na nossa mente que a gente ia conquistar e ia conseguir e realmente o sonho dele se realizou.

A gente chegou até comprar, na época dizia que era a luva, a chave. E o rapaz que tava lá eu acho que só tinha três meses, era até um carioca que tinha comprado o ponto, o prédio não, o ponto. Na época a gente comprava a luva, se não era muito caro. Vamos dizer que na época custou 35 mil reais, mas era como se fosse 350 mil hoje, entendeu? Há 24 anos, então a gente pensava até que ele não ia vender, porque só fazia três meses que ele tava lá. E o vendedor na época era Brahma e Antarctica, não existia Ambev, era Brahma ou Antarctica. O vendedor que ia perguntar pra ele se ele vendia, aí ele foi e disse que vendia. Um sobrinho meu ligou para a gente, empreendedor também, disse que a resposta era “vendia”, aí meu marido se preparou e veio e comprou. Aí tamo lá até hoje.

Ana Alice: Dona Fátima, a senhora comentou que, antes de vir ao Ceará, já trabalhava em restaurantes. Como surgiu esse interesse? E eu queria saber se é muito diferente do que hoje é a Lions.

Dona Fátima: Era muito diferente, até que a gente chegou aqui, porque a gente só trabalhava durante o dia. Só trabalhava durante o dia, porque era só comida, era só almoço, lanche, café da manhã. Aí quando começou a, por exemplo, aí tinha festival de cinema, a galera do cinema, que vinha ali pelo São Luís. Iam no Lions. Nessa época a gente passava “Cine Corno”. Cine Corno, entendeu? Um cineminha para a galera, cada um contando a sua história real, as pessoas que tinham sofrido esse devaneio. Aí eles contavam a superação, como foi, a troca depois de arrumar alguém maravilhoso para se curar daquele trauma. Quer dizer, eles contavam aqueles depoimentos deles, então isso agradava muita gente.

A galera do São Luís às vezes ia lá e via uma galerinha bem concentrada ali, e sempre tinha uma musiquinha depois, um sambinha, uma coisa assim, mas terminava cedo. Aí eles sempre diziam, “Dona Fátima, vamos fazer assim, assim, e assim, vamos fazer um som aí, um DJ, arruma as caixas de som que a gente vai para aí. Bote cerveja para gelar que a gente vai para aí”. Então, esse pessoal ia, pouca gente, mas ia. Tinha também um rapaz que era professor, David até falou onde era, e ele terminava o curso dele, era professor de filosofia, e ele terminava o curso dele e ele levava também. “Posso levar minha galera para festejar aí?”, no final do curso. Aí leva o pessoal da sala dele tudinho que ele dava os cursos. Tanto da tarde, como da noite, aí reunia todo mundo e ia comemorar lá. Aniversário, quando uma pessoa queria aniversário, uma despedida de solteiro… aí começou assim. Aí foi indo, e foi indo e foi dando certo, e as pessoas gostando e comentando. Eu sei que teve época que tinha, acho que não sei agora, uns vinte mil seguidores. Pra quem não tinha nada, né? Eu sei que a galera gostava de tá lá. Aí ficou diferente por isso, porque a gente conseguiu conciliar o dia pela noite, para não trocar. Porque tem os clientes do dia, né?

Agora depois da pandemia, não deu mais certo ficar durante o dia, aí a gente ficou só na noite. E como o movimento da noite só começa mais na quinta, sexta e sábado, a gente abre. Uma véspera de feriado, às vezes, uma quarta, e depende de quem quer o dia, porque pode ser até em uma segunda, porque às vezes é um aniversário, né? Uma despedida de amigo que vai para outro país, como já aconteceu e fez lá. Aí eles podem escolher qualquer dia, diga “Dona Fátima, eu vou levar a galera assim e assim”, aí a gente vai e abre as portas e recebe de braços abertos, com o maior carinho que eu posso.

Yasmin Louise: Bom, dona Fátima, a senhora e o seu marido saíram lá da Paraíba, vieram morar aqui, no Ceará, já com o Bar da Lions em mente. Eu queria saber quais eram as expectativas iniciais e se elas foram correspondidas.

Dona Fátima: As inicias correspondidas foi que, a gente foi muito abraçado aqui. Pessoal de Fortaleza, eu me considero cearense também, porque receberam a gente muito bem, a freguesia era maravilhosa e ainda é, claro. Era não, é, pessoal digo, do dia. E, eu sei que foi espetacular. A diferença é porque assim, para a gente estar em uma terra que não se nasceu e não se criou lá, para a recepção que tivemos. Logo a gente procurava ser muito receptivo, chegar com “boa tarde”. Aí “eu posso fazer um prato e dividir com alguém?”, a gente deixava, ah não ser que fosse uma coisa muito…que fosse dar algum prejuízo grande. Aquilo foi conquistando e foi indo, indo, indo e a gente tá aí.

Muita gente aqui do Ceará é o pessoal que, a gente aprende muito com eles. Na hora de tá num sofrimento, fazia assim tipo um humorismo daquilo que a gente tava vivenciando e seguindo em frente, porque eu digo assim, já teve altos e baixos né? Principalmente no financeiro, mas a gente soube cair e se levantar, cair e se levantar. E lá [Paraíba], assim que caiu, a gente ficou sem muita esperança, então vamos partir pra…aí foi isso que aconteceu, lá cidade [Campina Grande] aqui [Fortaleza] capital, e a orla marítima, a gente achou que aqui era bem melhor, e a gente tinha pressa porque David só tinha sete anos, meu marido já numa certa idade e eu também, e a gente tinha pressa para criar o menino. Para acontecer, deixar as coisas acontecerem.

Isabella Pascoal: Desde os anos 2000, a senhora e o seu marido, o seu Eufrásio, se dedicam ao Bar da Lions e também mostraram preocupação em manter a praça dos Leões viva e cuidada. Queria saber como foi esse processo de buscar melhorias para o entorno do bar.

Dona Fátima: Ó, o meu marido batalhou muito. Na época, era muito largado aquilo ali assim que a gente chegou. Tinha muita…muita coisa errada. Assim, eu não gosto de dizer o quê para não discriminar, mas, tinha umas coisinhas erradas, então ele batalhou por exemplo, a luz, a energia que era tudo no escuro. Ele batalhou para vir a energia, ele batalhou para vir segurança, ele sempre estava em contato com o pessoal da prefeitura. Demorou na época mas saiu, demorou um bocado de tempo mas saiu e hoje em dia é bom porque o relacionamento da gente com o pessoal da prefeitura melhorou 100%, pelo menos com esses administradores atuais, entendeu? No passado era difícil, mas depois que foi trocando, veio as pessoas que combinaram mais com a gente, por quê assim, se a gente pedir um espaço, para botar uma grade para dar mais tranquilidade a quem frequenta lá. Uma grade até certo ponto eles dizem “pode, o senhor tem tantos metros e pode botar tantas mesas e tantas cadeiras”. Já tivemos esse avanço também e meu marido sempre aparava as árvores, ele aparava as plantas, ele tinha essa energia. Hoje em dia ele não tem mais essa energia para ficar fazendo isso, só que ele nunca exigiu nada porque assim…a gente achava assim, se a gente tá usufruindo, a gente tem que cuidar também, não só é o Poder Público.

Ele [Eufrásio] por exemplo, já foi enfrentado por ele querer, enfrentado por pessoas negativas né, por ele querer que ficasse tudo organizadinho. Mas, ele também…mas se saiu bem, não deu muito…foi só ameaçado mas não aconteceu nada não, foi protegido. Por ele querer que não quebrasse banco, muitas vezes os bancos quebraram e ele ia lá e consertava, tinha pessoas que dizia “por quê tudo que o senhor faz por essa praça não filma, porque se algum dia alguém cobrar do senhor, o senhor tem um documento mostrando que o senhor coopera com a limpeza”. Aí ele diz “não, não, o que tiver que fazer vai ser assim mesmo” porque se eu tô usufruindo, no fundo, no fundo, a gente usufruia para ter espaço lá, né, e muitas vezes ele comprava o material de limpeza, dava para alguém limpar lá onde é coreto. Contratava alguém para limpar, principalmente porque ele tinha a chave, a prefeitura deu a chave a ele para o pessoal da limpeza, para entrar lá embaixo, numa…que tinha uma gradezinha que ele abria para fazer limpeza, tudo isso ele fazia. Agora não, agora eu acho que tem um administrador que está administrando, que é o pessoal da C.Rolim, é o mesmo que administra a praça do ferreira, que cuida. Vocês sabiam disso? Aí muita coisa a gente não pode, ultimamente, se meter muito porque é com eles né e a gente não pode palpitar, eles tão cuidando, entendeu? Mas tá certo, tá limpinho, mas até então era ele, meu marido, que dava mais, a limpeza também a prefeitura dava, mas muitas coisas era ele que fazia. Saco para lixo, material de limpeza, aquelas mangueiras grossas quando faziam planta que demorava para pegar, ele mesmo aguava. Porque era espaço público, mas a gente tava usufruindo, a gente tinha que ajudar a cuidar. Quando faz buraco ali em frente, ele vai lá…ele também sabe negócio de pedreiro, ele vai lá e, bota as pedrinhas, assenta as pedras que saiu, que fez o buraco, que é para alguém que for pras festas calçado de salto não cair, ele mesmo cuida dos buracos que ficam em volta.

Jéssica Arruda: Como a senhora bem disse, dona Fátima, o Bar Cultural Lions começou funcionando pela manhã, até as cinco horas [da tarde]. Eu queria saber quais as principais mudanças que aconteceram quando o bar deixou de funcionar nesse período da manhã e passou a funcionar à noite com os shows, festas… E queria entender também as transformações que aconteceram nesse espaço até ele se popularizar e se tornar um local que, por exemplo, foi cenário de gravação de filme.

Dona Fátima: Realmente… Eu acho que, pela estrutura do prédio, onde ele é localizado [acho que tem essa vantagem], a natureza em volta, aquelas árvores… Tudo tem a ver com o desenvolver, com o gostar de ‘tá no ambiente. Aí você une as pessoas com essa natureza, e fica bem mais fácil das pessoas gostarem.

Não precisa de um ar-condicionado ou dificilmente um ventilador, porque, muitas vezes nas festas, a gente dá uma fechadinha nas portas. Todas não, mas às vezes a pessoa quer dançar, como se estivesse numa boatezinha. A gente apaga um pouco de luz, entendeu? Colocamos um projetor, para contar as histórias mesmo. Acontece de ter um projetor instalado direto porque alguém que quer mostrar alguma coisa, quer que apareça imagem, quer que apareça som… Tudo nós colocamos para acontecer, e às vezes tem que ser de luz apagada.

Acho que o carinho também, eu participei muito. Acho que é por isso que se chama Bar da Lions, porque as pessoas viam que era assim: o trabalho da gente de dia era tomado pelo meu marido, que ficava lá, e eu e David ficávamos na noite. Eu tinha aquela obrigação de estar bem para receber o pessoal… Eu acho que o resultado foi esse. As pessoas se lembrarem e gostarem de mim, porque eu sempre quis receber.

Às vezes dava abraço e eles me chamavam de tia. Nunca me chamaram pelo nome. Era sempre “tia Fátima” ,entendeu? Tinha uns que chegavam perto de mim e diziam:

— Mãe, teu filho é hétero?

— É.

— Mas se não fosse, tu deixava eu casar com ele?

— Deixo! Deixo na hora. É só ele querer.

Aí a gente foi criando essa amizade e essa coisa. Apesar da minha idade, eu não tenho essa besteira de ter aquela coisinha. Aí, foi dando certo e as pessoas foram gostando.

Acho que o resultado foi esse: ser lembrada e alguém lembrar de mim, de falar sobre mim por causa do carinho, que era recíproco. Eu não fazia isso só para trazer o cliente. Eu fazia para eles gostarem mesmo de mim. Eu achava que tinha que ter essa ligação, você tá me entendendo? Essa empatia. Independente de cor, a pessoa ter sua liberdade, de gênero, de tudo. Acho que isso fez essas conquistas. As pessoas se lembrarem de mim, me chamarem para alguma coisa, me perguntarem para saber. Acho que foi esse carinho que fez esse elo acontecer.

Ana Alice: Dona Fátima, em outras entrevistas e até agora mesmo, a senhora tem enfatizado muito essa alegria de trabalhar na balada, na noite. Queria saber como é esse sentimento de estar rodeada de pessoas tão diversas, ritmos, músicas, estilos, mas também perto da sua família.

Dona Fátima: É muito bom. Eu gosto. É aquela história: às vezes eu não vou pra lá porque eu me sinto muito cansada, mas na maioria das vezes eu tô lá. Então, aqueles que vão chegando e são novatos, fica meio assim olhando aquela senhorinha lá, às vezes numa cadeirinha de balanço, mas eu estou lá. Mas os antigos já sabem e veem. Eles chegam, me abraçam, aí aquele novato já fica mais aberto para chegar perto de mim, conversar e saber. “Aqui é a dona Fátima! Dona Fátima da Lions!”

Acho que é por isso que se chama da Lions, porque a minha presença lá, como feminina, da Lions. E existe também uma história dos leões, não sei se vocês sabem. Diz que o leão que está lá é uma leoa, mas chegou com a característica masculina de leão. Aí, depois que foram ver, já era, estava lá, não sei se trocaram. Só sei que teve uma história desse tipo lá. Acho que é isso. Da Lions.

Yasmin Louise: Dona Fátima, em 2020, começou o isolamento social por conta da covid-19. Como foi a experiência de ter que se distanciar do bar, de mudar a sua rotina? O que mais te marcou no início dessa experiência?

Dona Fátima: Realmente, foi muita insegurança, porque no dia que veio o lockdown para fechar [o bar] porque era obrigado, a gente tinha no caixa 350 reais, porque tínhamos pago uma conta de luz de 1800 reais e isso aqui não é uma lamentação, foi uma realidade e por isso que eu vou me abrir e falar.

Então, foi uma insegurança muito grande, a gente ficou sem saber o que fazer porque a gente queria continuar aberto. Usar máscara, usar o álcool, se distanciar, não ficar mais se abraçando por enquanto, eram ordens e tínhamos que seguir os protocolos. Aí ficou muito difícil, então o que é que a gente fez? Nós não sabíamos se a Enel ia esperar por uma conta de luz, não sabíamos se o dono do prédio ia esperar o aluguel, um aluguel de 3000 e tanto, não sabíamos da conta da água, não sabíamos nada naquela insegurança, e aí o que eu fiz: “bem, eu vou fazer o que eu sei fazer, eu vou fazer comida, eu vou fazer lá em casa e apelar e anunciar sobre umas quentinhas lá em casa” e assim eu fiz. E aí lá em casa tinha uma árvore na frente que faz uma sombra muito grande, num pátio bem grande, que dá para botar mesa, cadeira. Eu acordava às seis horas da manhã e eu ia fazer as comidas, dava onze horas e o almoço já tava pronto e foi vindo a galera. Primeiro dia eu vendi 7 quentinhas, o segundo dia eu vendi 12 e teve um dia que chegou a 60, eu estava feliz da vida e o pessoal foi gostando da minha comida. No Lions eu não conseguia cozinhar para todo mundo, eu fazia algumas coisas e levava para lá [Bar Cultural Lions] porque lá tinha cozinheiro na época, era uma comida também boa, mas lá em casa eu fazia com aquele carinho, aquela coisa, eu fazia como se fosse para a gente. E aí eu fui fazendo minha lasanha, eu fui fazendo meu baião, o pessoal foi gostando e foi aumentando a freguesia, só que… Chegou um ponto onde abriu o Lions e nada de melhorar o durante o dia quando veio a hora de reabrir, porque havia muitos concorrentes, tinha o pessoal que vendia na rua também e as pessoas também tinham ficado endividadas, elas podiam pagar uma quentinha de 6 reais mas não podiam pagar uma de 12, que era o nosso preço e a gente não podia fazer mais barato, assim, existia uma reclamação.

Um dia meu marido foi para o mercado comprar algumas coisas que estavam faltando, vamos dizer 300 e pouco reais e na hora do almoço vendeu só 180, a gente teria que pegar o resto da comida e jogar fora… E a gente já com dificuldade financeira. E eu disse: “Quer saber?, eu não vou mais fazer comida não. Eu não vou abrir mais de dia não.”. E quando vendia uma festa dava certo, o que vendia dava para pagar, dava para ajeitar, dava para pagar uma conta, pagar outra, entendeu? E a gente foi e disse: “Vamos ficar só nas festas.”, porque a gente tava trabalhando e não tinha o suficiente para arcar com as responsabilidades financeiras e a gente foi fazer isso e foi dando certo.

Aí quando foi em casa, em casa eu fechei por quê? Porque eu tava me acabando muito. Assim, é muita dureza, viu? Tinha que ter coragem de leão. Porque eu acordava 6 horas e 3 horas era quando eu parava, mas eu parava muito cansada, porque a idade cobra isso da gente. Enfrentar uma cozinha com aqueles panelões, claro, eu tinha um ajudante, mas eu queria fazer tudo… Tudo não, eu digo assim, eu não confiava de você comer minha comida e ser outra pessoa que eu achava que não ia fazer igual eu fazia, a gente ensina por 3 dias, quando passam 3 dias, não faz mais igual, então eu mesmo tinha que fazer. Aí pronto, não fiz mais, porque o Lions começou a dar certo. E os DJs ficavam tão preocupados: “Gente, vamos fazer tudo para esse Lions não morrer porque a gente também depende de vocês, depende do Lions.”, porque os DJs famosos mesmo começaram no Lions, tanto que tem um bocado deles que tem a maior gratidão, tem uns que vive para o Sul, vive para a Bahia, todos começaram no Lions. Teve DJ que já trouxe 3000 pessoas para o Lions, no começo das festas naquela época e por isso que o Lions foi pegando força e pronto, só o que tem. De vez em quando tem uma coisinha, porque assim, ninguém agrada todo mundo, sempre tem alguém que vai ter algo para reclamar, para dizer alguma coisa, mas é aquela história, a gente já se acostumou e sabe que é uma fase, que vai passar. E aí nessa época como eu tava falando dos DJs, teve um até que andou fazendo uns quadros, comprando uns quadros, camisas, fazendo rifa, tudo para ajudar a gente, tudo para o Lions não morrer, para ajudar a pagar a luz, nessa época que tava num perrengue do lockdown, mas aí deu tudo certo. E hoje estamos aí, tem que ter muita energia para ir vencendo e vencendo a cada dia.

Ana Alice: Eu queria saber se, durante a pandemia e a própria reabertura, o bar recebeu o apoio da prefeitura ou dos frequentadores.

Dona Fátima: Olha, dos frequentadores, foi o que eu lhe disse, o DJ fez isso e conseguiu na época juntar, eu acho que, 1.800 reais pra ajudar na conta da luz. E teve outros que ajudaram também. O governo pagou aquele dinheiro que a gente tinha que escolher, ou 70% ou integral [Medida Provisória 936 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda], aí a gente preferiu o integral que fica direto pros funcionários e a gente se virou com o que a gente tinha e lucrou com o que produzimos em casa.

E quando reabriu e começou a dar certo, como eu já estava me sentindo muito cansada, o meu marido disse: “Minha filha, já que tá prejudicando a sua saúde, é melhor a gente parar em casa, deixa só lá e você faz alguma coisa pra levar pra lá e não fica com esse compromisso de acordar seis horas da manhã e ficar até três horas fazendo aqui em casa. Já tá dando certo, não precisa abraçar o mundo com as pernas.”

Eu concordei e pronto, foi isso mesmo.

Jéssica Arruda: Dona Fátima, são muitas pessoas que circulam pelo espaço do bar, muitos artistas que passam por lá, são muitos jovens e muitos adultos. Eu queria saber da senhora qual a sensação de ser uma das responsáveis pela realização de um espaço tão importante assim para a movimentação do centro e das pessoas da cidade.

Dona Fátima: Para mim, costuma ser uma honra, viu? Eu me sinto honrada de estar a frente, porque no fundo são pessoas ilustres. Claro, todo mundo. Mas principalmente esse povo que tem esse “QI”. Porque todo artista tem essa sensibilidade, da gente pisar no pé deles e eles que pedem desculpas. Então para mim, não é pelo o que tem e sim pelo o que eles são. Então a maioria das pessoas que frequentam lá [Bar Cultural Lions] tem esse valor de coração, sabe? Então eu me sinto muito honrada de estar a frente e de estar recebendo essas pessoas. Eu me sinto muito bem. Não é querendo ser santíssima não, mas eu dou muito valor, o que importa é o coração. O visual também é importante, mas o coração, aqui dentro, é muito mais importante. Então eles são, assim, o que eu gosto. A maioria que frequenta lá é assim. Então eu me sinto honrada. O apoio de vocês é maravilhoso. Vocês veem. Vocês que estudam, fazem as coisas acontecerem com muita sabedoria. Eu não estudei o suficiente mas pelo menos tenho essa experiência, essa troca. E eu aprendo muito com isso. É por isso que eu gosto. Aprendo muito.

Ana Alice: O seu marido e o seu filho falam que você e o bar são uma coisa só. Como você enxerga essa relação entre você e o bar? Quais são seus sentimentos sobre esse espaço tão conectado à sua vida?

Dona Fátima: E depois que a gente veio pra cá [Ceará], vivemos mais lá dentro do que na nossa própria casa. Então existe essa conexão. E também existe um fato. Parece que eu vivi em outra vida. É como se eu já tivesse vindo ali [Bar Cultural Lions]. Tem coisas que se passam ali que parece que eu já vivi. A gente às vezes não tem a sensação de “eu já te conheço?” Ou alguma coisa assim? É como se eu já tivesse vivido aquilo ali, entendeu?

Porque ali é um prédio de mais de 100 anos. E agora que eu tenho 70. Vamos dizer, há 30 anos atrás? Sei lá o que eu fazia ali… Se eu não dancei a dança do Can Can? Diziam que era a dança recebia as pessoas. Eu acho que eu tenho essa ligação também.

David e Eufrásio melhor ainda, um apoiando o outro, dando sabedoria para o outro, segurando a onda do outro para não exagerar em uma coisa. Sempre um tem que ter esse controle emocional mais aguçado e a gente procura se compreender nisso aí.

Isabella Pascoal: O bar já carrega uma longa história de mais de duas décadas. Como que a senhora imagina o futuro dele? Quais são as suas expectativas?

Dona Fátima: Que nunca morra, que ainda que não seja com a gente, que apareçam pessoas dignas para estar ali e levar a frente, do mesmo jeito que hoje [eu levo], porque combina muito isso que acontece hoje, com esse movimento, com a frequência desse pessoal, com a alegria deles quando estão lá, de se sentir à vontade, sabe?

Ultimamente, a gente implantou lá a venda de pulseirinhas, três reais. Porque a gente se viu muito acuado para ter que pagar o DJ. E às vezes a bebida que vendia não dava. E a gente divide muita venda com os ambulantes, que também são dignos. O sol nasceu pra todos. Então a gente divide vendas com eles. Porque eles também têm o direito de correr atrás, de ganhar o pão deles. E por ali ser um lugar público, eles acham também que podem ficar e a gente não vai peitar, porque isso é por conta de relacionamento. E tem uns até que são muito bacanas, eles cooperem para limpar. Antigamente era a gente que limpava. Às vezes a festa terminava às quatro horas da manhã, às sete horas, a gente ainda estava limpando a praça, catando as coisas, David com o vassourão, meu marido com a pá, eu juntando. Mas hoje não, os próprios ambulantes fazem uma vaquinha, chamam o morador de rua, juntam tudo e vão para a praça deixar tudo limpinho. Às vezes a sujeira foi de outra pessoa, mas quem leva culpa é a gente. Então a gente sempre teve esse cuidado.

Quando implantamos esse negócio da pulseirinha tivemos muitos problemas, as pessoas ficaram zangadas, outras não queriam pagar, claro, nem todo mundo, a maioria não, os seguidores que gostam de ir lá mesmo já chegavam lá dizendo “bora, cadê a pulseira? Bota aqui!”, os que são raiz mesmo. Depois que a prefeitura deu esse espaço para a gente colocar as grades, por exemplo, falta meia hora para a festa, para começar a música, aí coloca a grades, ajeita, amarra direitinho lá, bota a mesa. Você tá lá dentro, aí quer tomar mais ar do que tá lá dentro, aí sai, senta na mesa, tem a mesa lá, tem as cadeiras, quer beber sentadinho, bebe sentado.

Então a gente colocou, por exemplo, se é uma banda, vamos dizer que vamos cobrar 10 reais, pronto, a pessoa entra, já tá ali com a sua pulseira, independente se vai para o banheiro ou não. E já é cliente que vai mesmo, que gosta, que eles vão e pagam, porque é uma ajuda de custo para a gente ter condições de pagar a banda, de pagar o DJ. Porque às vezes só a bebida não dá para pagar. E tá assim, e tá dando certo, o pessoal tá gostando.

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