Bem-vindos a uma cidade sem história

Raissa Oliveira
EntreFios - tecendo narrativas
3 min readSep 1, 2021

[CRÔNICA]

Por Raissa de Oliveira

Arte do edifício São Pedro / Reprodução/Instagram @mroilustra

Pegar o ônibus 071 — Mucuripe/ Ant. Bezerra, passar dentro dele pela ladeira da rua do Dragão do Mar, desembarcar na avenida Raimundo Girão e seguir a pé em direção ao mercadinho São Luiz para só depois chegar à praia e ver o mar. Esse é o caminho que percorri rumo à Praia de Iracema durante minha adolescência, e ele por completo tem uma constância: o edifício São Pedro.

Descia na parada em frente a ele e passava pelos seus arredores sempre observando os detalhes novos de esquecimento. Entre entulho, lixo e problemas na estrutura, ele se mantinha em pé, sobrevivendo em uma cidade que luta para esquecer seu passado.

Pensar em um futuro onde refaço esse caminho, mas não posso apreciar esse prédio é estarrecedor. Assim como já não posso mais passear pela orla da avenida Beira Mar e ver a beleza clássica da casinha azul onde costumava ficar o Boteco Praia. Assim como não tem mais como aproveitar a delicadeza de uma vila do passado do Residencial Iracema, ou mesmo a destoante imponência do Casarão dos Fabricantes, no Centro, destruído em chamas.

Nosso passado tem se perdido, uma construção de cada vez, para dar lugar aos prédios espelhados, cada vez mais altos e sem personalidade. A especulação imobiliária está apagando as marcas de quem já fomos como cidade para nos tornar mais do mesmo.

E a prefeitura, que deveria tomar as rédeas, não faz nada. A SecultFor afirma que está produzindo uma lista de prioridades, mas, enquanto isso não acontece, as construtoras se aproveitam da morosidade do processo.

No momento, em Fortaleza, temos 64 bens tombados. São sete pelo governo federal, 25 pelo estadual e outros 32 pela prefeitura. O último tombamento realizado pela esfera municipal foi o do Colégio Marista Cearense, em 2015. Nesses seis anos que se passaram, muito mais foi destruído do que preservado. Histórias de vida se foram com as estruturas derrubadas.

A decisão pela retirada do tombamento do Edifício São Pedro — antigo prédio do Hotel Iracema Plaza — se deu pela alegação de que o local “possui inúmeras patologias em alto grau, notadamente em sua estrutura de concreto armado, sendo inviável economicamente recuperar a estrutura do imóvel”, de acordo com o decreto 15.096/ 2021 da prefeitura de Fortaleza.

Economicamente inviável. Ele não se tornou inviável da noite para o dia. Foram anos de esquecimento proposital. As tragédias recentes, a exemplo da morte de uma grafiteira, que caiu do terceiro andar por problemas na sustentação, ficam nas costas de quem deliberadamente deixou as estruturas ruírem. Quem preferiu deixar um prédio perfeitamente habitável para a população em situação de rua se acabar com os efeitos do tempo e da falta de cuidado.

Difícil pensar em ir pra praia e não vê-lo. Mais difícil ainda pensar em todos os outros poucos prédios históricos que restam na cidade. Saber que todas essas histórias têm duração marcada para acabar e virarem novas fontes de dinheiro. Díficil viver em uma cidade sem passado, sem história, onde tudo é apenas lucro.

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Raissa Oliveira
EntreFios - tecendo narrativas

Feminista. Apaixonada pelo universo, por músicas e por doces. Acredita que (quase) tudo pode ser relativo. Escrevendo para aliviar e alimentar a alma.