Camarão

[CRÔNICA]

Por Camila Fontenele Garcia

Sábado. Dia de sol, de praia, de aniversário de namoro dos meus pais. Vinte e cinco anos? Parece impossível.

Fomos eu, meus pais e minha irmã procurar uma barraca que parecesse não estar lotada até a porta de entrada. Achamos uma mesa longe, isolada, quase à beira do mar, e o garçom vem logo com o cardápio perguntar o que íamos pedir.

Eu disse isca de peixe! ao mesmo tempo em que minha irmã disse batatinha!. Meu pai pede os dois, pra não dar briga, não criar desavenças, não quebrar o clima, e vai dar um mergulho. Ficamos a sós. Eu, minha irmã, e minha mãe, sentadas em uma mesa isolada em uma barraca quase vazia em uma tarde de sábado, comemorando uma baita conquista, pra falar a verdade mais sincera.

Vinte e cinco anos? Tá de brincadeira. Tempo pra caramba! E eu lá, viajando, me levanto e me viro de costas pro mar para ajeitar a cadeira que escorregava na areia quente, quando o vejo. O camarão. Vermelho, curvado, morto. Um dentre dezenas, centenas, jogados em uma cesta que pende do antebraço de um vendedor, vindo em nossa direção, na direção da minha mãe.

Ela tá de costas, não vai ver, preciso avisar! Instantaneamente, de longe, eu espalmo as mãos, dizendo não! Ela vê e se vira, assim como minha irmã, e ambas recuam ao negar a oferta do vendedor, que vê três mulheres à mesa e explode. Isso é um desaforo! Uma falta de educação! Alergia é só comer, isso de ficar perto não existe! Quem dera não existisse, moço. Mas ele não escuta, e sai andando em direção à barraca mais próxima nos xingando, deixando nós três — e o garçom, que ainda espera para saber qual cerveja minha mãe vai escolher — atônitas. Isso é porque teu pai não tá aqui. Quando ele tá, nunca fazem isso. E, do nada, lá vem ela.

A culpa.

A tão conhecida culpa, o flagelo, a punição. Será que fui grossa? Não poderia ter sido mais gentil? Com licença, por favor, não faça isso com desconhecidos, não aponte um camarão pra eles. Minha mãe pode morrer! Senhor, por gentileza, não se ofenda, não, espere… não tive a intenção. Não quis lhe chatear! Mas meu pai não estava aqui, foi tomar banho de mar, tá tão lindo hoje, sabe? E você veio, elas não viram, mas eu vi, e eu tinha que ver, então neguei, pedi de longe, e você continuou mesmo assim, e se estressou, não gostou que eu disse “não”. A culpa foi minha!

Já sei que vou pensar nisso por semanas, meses, anos. Vou remoer, repassar tudo, reconstruir os acontecimentos vezes o suficiente para me convencer de que errei. Sinto a culpa do jeitinho que o cristianismo involuntário me ensinou, no meu âmago, quando acordo e quando descanso, quando estudo e quando me divirto, perpétua. Me convencendo de que não faço o suficiente. Tudo é produtividade, tudo é resultado, meta, objetivo. Não existe mais o espaço negativo. Todos os planos são a longo prazo, o amanhã foi semana passada, e o futuro não existe a não ser que você sobreviva o hoje. Sinto culpa até por me sentir culpada, por coisas que nem sempre são culpa minha.

Ah, fazer o quê, né? Bola pra frente. Sábado de praia, maior sol, vinte e cinco anos de namoro dos meus pais. Chocada que eles ainda se gostam tanto. Vou curtir a música e a companhia, sem pensar no que tive que ouvir, e muito menos na reportagem em branco aberta em uma tela do meu computador. Não vou pensar em estágio, em desemprego, ou no preço da gasolina. Por hoje, toda a minha culpa vai ter que me desculpar.

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camila fontenele garcia
EntreFios - tecendo narrativas

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